Vem levar o que é teu

vem_levarEu quero acreditar que o teu celular está perdido em algum boteco por aí, e por isso você não retornou as minhas ligações durante esta semana. Tenho repetido pra mim mesma que a tua secretária anda sobrecarregada com os afazeres do escritório e acabou esquecendo de colocar na tua mesa a minha dezena de recados. Que abriu algum restaurante de comida mineira em teu bairro e te roubou a freguesia daquele feijão com caldo e bife a milanesa, onde qualquer um podia te encontrar religiosamente às 12:40. E eu tomei a liberdade de avisar ao porteiro do teu prédio que o teu interfone está quebrado, mas ele tem se recusado educadamente a me dar ouvidos.

Eu só tenho te procurado pra dizer que se esse tal de tempo é mesmo o que você quer, então toma ele de vez. Ta aqui. Pega todo o tempo que você precisa, coloca dentro da mala junto com as camisas de botão que fizeram casa em meu guarda-roupa e vai logo embora. É porque eu venho achando que conviver com a tua completa ausência talvez seja menos doloroso do que ser forçada a olhar diariamente para todos esses fragmentos teus que ficaram por aqui. Eu ando me esbarrando nas pontas ásperas dos pedaços que você deixou. Os curativos que tenho feito estão até conseguindo esconder as feridas, mas a dor estampada em meus olhos me denuncia aonde quer que eu vá.

Então volta aqui só mais uma vez pra levar embora tudo o que é teu. O moletom desbotado que eu usava pra dormir, o iogurte desnatado na geladeira, as revistas de esporte na prateleira da sala. Ah, e não esquece a narração da Fórmula 1 me acordando aos domingos. A caneca do Homer Simpson continua do lado esquerdo da primeira porta do armário, e no meu pescoço está o toque dos beijos que você depositava em silêncio enquanto eu lavava a louça. Leva as letras das músicas que você cantava errado durante o banho e as gargalhadas que elas me arrancavam. Na minha roupa de cama ainda tem o cheiro do teu desodorante. Leva também o gosto do teu abraço, que tem teimado em amargar o meu café da manhã. Leva as marcas que o teu cafuné deixou em meus cabelos. Leva o calor do teu corpo que ainda habita o meu.

Vem, leva tudo o que é teu. Me leva também – porque eu não sei mais ser outra coisa senão ser tua. Me joga nas tuas costas e diz baixinho que eu te pertenço. Me traz de volta a felicidade – me leva. Avisa ao teu porteiro que eu cheguei pra ficar. E diz pra ele que pode deixar o interfone continuar quebrado – depois que esse tempo nublado passar, eu não quero que nada, nunca mais, interrompa o nosso amor.

Este texto foi escrito especialmente para colaboração com o blog Dona Oncinha Pintada.

 

Imagem: reprodução.

Comments

comments

Leave a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *