Sobre os versos que eu fiz

20081211_4609Você nunca soube que eu escrevi sobre aquela noite de quarta-feira. Aquela em que o vento de outono sacudia a janela e inflamava a minha insônia. Estava frio. Estava com a perna imprensada entre as tuas, e você, adormecido, já não conseguia manter o esforço para esquentar meus pés. Escolhi as palavras mais ternas para dizer que eram os teus pelos o meu verdadeiro cobertor, e que nenhum travesseiro era mais aconchegante do que o teu hálito confortando a minha nuca. Colori páginas ao contar que fiz do teu braço atravessado em minha cintura o meu livro de cabeceira, e do arfar da tua respiração, minha canção de ninar predileta. Será que você teria entendido minhas metáforas como entendia o meu medo de altura? Eu nunca soube.

Você nunca viu as estrofes onde descrevi a doçura nos teus olhos quando disse pela primeira vez que era eu a mulher do teu sempre.  E todos os versos que dediquei para falar o quanto eu gostava do jeito risonho com que você dizia que os nossos filhos teriam o meu sorriso, mas aprenderiam a dobrar roupas com você. Eu rimei o teu perfume com o meu sossego. A tua boca, com o meu desejo. Enquadrei nossos sonhos em sonetos, onde a gente cultivava um pomar e fazia aquela cena virar poema. Qual seria a expressão da tua face quando ouvisse o papel sussurrar em segredo que as curvas do teu corpo eram o único lugar onde eu conseguia encontrar o meu norte? Eu nunca vi.

Você nunca imaginou como seria a nossa vida em meus versos. Ou como eles eram teus… Ah, como eram! E que, ao construí-los, descobri que não havia palavra em nossa língua capaz de definir a sensação de te ouvir chamar meu nome durante um pesadelo. Ou as milhares de reações químicas que se processavam em meu corpo ao toque do teu abraço. Ou, ainda, a surpresa de ouvir a campainha no meio da madrugada, tocada por um pedido de desculpas aflito para entrar. Eu teci neologismos para traduzir o meu coração. Eu usei uma coleção de linhas para desenhar o amor que nunca soube pronunciar. Em nenhum momento passou pela sua cabeça que, ao te presentar com aquele caderno de versos, eu estava te dando a chance de ler a minha alma? Eu imaginei.

O caderno de versos. Ele continua tão cheio quanto este lugar está agora vazio. Maltrapilho, na companhia das traças e traçado pela solidão. A capa, antes decorada com recortes alegres de revistas, mostra-se opaca pela camada de poeira (ou seria embaçada por uma lágrima?). As cicatrizes que marcaram a nossa história viraram rimas, porque até mesmo na dor habita a beleza do que é verdadeiro. As promessas que hoje são memória contagiaram a métrica, e cada sílaba soou feliz por sussurrar um pedacinho de amor. Mas as rimas foram intocadas, e a métrica morreu calada.  Eu fui um verso faminto por teus olhos, sedento para ser materializado nos teus lábios – e você não me leu. E então a poesia, assim como o sentido de toda aquela história, foi esquecida em silêncio.

Agora, naquele caderno, o eu-lírico não sou mais eu. Os personagens não são mais meus. Nem os versos, teus. No vazio, apenas o pó. Nenhum ruído, nenhuma razão. Muito menos resposta.

Este texto faz parte de um projeto especial do Esquinas com canções do Nando Reis e foi inspirado na música “Resposta“.

 

Imagem: reprodução.

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