Estórias que não se conta

Tem sentimentos que a palavra não toca. Há terrenos onde a palavra não pisa. Emoções que se estendem assustadoras feito um abismo, e tentar alcançá-las seria lidar com o irremediável da queda livre – uma vez ditas, não há como voltar atrás. Por isso as palavras só olham de esguelha, a uma distância segura. Não se sabe se é o pavor do que podem encontrar ou o instinto de evitar que elas próprias se espatifem e se silenciem para sempre.

Reza a lenda que, nos mares em que as palavras não navegam, há um monstro adormecido. Ali, onde tudo é escuridão debaixo da superfície calma. Mas as palavras sabem que não dá pra se aventurar por lá sem correr o risco de despertar a ira da criatura. É por isso que as palavras – até aquelas que dizemos apenas pra nós mesmos – temem o impronunciável. E então os lábios se refugiam na segurança do não dito, disfarçando-se entre sorrisos, e a caneta sabe o exato instante em que deve frear a tinta sobre o papel.

E a gente aprende a falar sem dizer, a comunicar sem entregar. Como aquele dia em que evitamos nos olhar no espelho pra não ter que encarar a espinha cheia de pus que nasceu em nosso rosto, algumas palavras também evitam nos olhar por dentro. É que em todas as suas infinitas possibilidades de combinações, desconhecem a organização necessária pra materializar tamanho horror. De tanto ignorar o que nunca foi dito, creem que uma hora vai cessar o que se há por dizer.

Às vezes são as palavras que fogem da gente, às vezes somos nós que fugimos das palavras. Literalmente correndo pela porta de casa, enquanto o ar corta os pulmões, até cansarem as pernas e faltar o fôlego. Nem sempre a fuga é saudável, e às vezes só esperamos que as palavras se derretam com o gelo do conhaque apreciado em um único gole, um gole atrás do outro. Às vezes queimamos as palavras na ponta do cigarro, às vezes lhes assistimos descer pelo ralo, às vezes não conseguimos evitar o engasgo e soluçamos palavras sem sentido – e a falta de sentido é o melhor que elas conseguem arrancar de nós.

Outras vezes as palavras se evaporam antes de ganhar saliva, e seguramos as lágrimas enquanto elas chovem por dentro, rezando em silêncio para que não decorem com morfo o nosso melhor. É que às vezes as palavras são sobrevivência, às vezes são sentença. Perdi as contas de quantas vezes morri só por me atrever a olhar pro que não tenho coragem de dizer a mim mesma. Toda pronúncia se torna promíscua só ao pensar em anunciar. Há estórias que não se conta. Calo como quem canta.

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