Mudança

O mais fácil veio primeiro. Havia mais de um mês que os grossos casacos de inverno repousavam tranquilos em seus cabides, hibernando sem preocupação. Embora o tempo da cidade gostasse de contrariar o prenúncio das estações, até então nem uma fina garoa ou dia cinzento trouxera consigo a necessidade de interromper aquele descanso. Por ora, pois, as vestes pesadas não tinham serventia. O alarme soou cedo numa manhã de feriado, iniciando o trabalho e atordoando-os. O primeiro cabide foi despido, e a caixa aberta no antigo chão de taco, ao lado de um par de chinelos compridos, engoliu o primeiro – um branco felpudo. As dobras desconheceram qualquer tentativa de capricho – um a um, desajeitadamente eles foram preenchendo o interior da caixa. E então os casacos voltaram a cochilar, agradecidos. E os cabides ficaram todos vazios.

O guarda-roupa foi aos poucos se acomodando dentro das caixas de papelão. Assim como a estante de livros, o armário da cozinha e o raque da sala. Dentro da casa, os móveis ficaram inteiramente nus. Eu passava por eles sempre de cabeça baixa – não queria admitir, mas o embaraço perante aquela indecência me deixava as faces rubras. Era uma nudez tão natural e escancarada, revelando prateleiras vazias, que foi preciso encarar o inevitável. À beira da minha mudança, eu estava como todos aqueles móveis – nua. Não despida em frente ao espelho após o último banho do dia – mas eu estava nua diante de mim mesma, do meu real eu, daquilo que minhas largas portas espelhadas nunca foram capazes de refletir. Eu era meu avesso, e o que eu via pelo lado de fora me constrangia – experimentei um pudor que nunca antes conhecera. Por alguns instantes, eu estava fora do meu corpo encarando cruel e assustadoramente cada aresta do meu próprio eu. O que ali era meu eu já não mais sabia. Eu, que sempre fui minha, entendi que acabara de me descobrir.

Autoconhecimento dói. Encarar um a um cada pequeno traço que me fez ser o que sou foi como uma sucessão de socos no estômago. Em vez de empacotar as certezas, joguei-as no grande saco azul de lixo, enquanto segurava a náusea. O livro que acreditei estar na coleção – a quem emprestei que nunca devolveu?, a blusa que jurava estar dobrada na gaveta – onde a perdi?, as taças de cristal ganhadas de presente – será que as quebrei?, os lençóis que de tão gastos mostravam-se inúteis – como nunca antes havia reparado nestes rasgos?, as pilhas de papeis antigos cuidadosamente guardadas – por que ainda as quero?, as luvas de lã caídas detrás da escrivaninha – nem lembrava que as havia comprado. Conhecer a si mesmo exige coragem, e eu fui pega de surpresa. Precisei rever todos os meus pertences – entender o espaço do que havia de novo, desfazer do que não servia, entrever o que faltava, alimentar o que era desejo e lamentar pelo que só então me dera conta de que havia perdido. O vislumbre foi certeiro e doloroso. Empurrei-o pela garganta abaixo, feito grosso comprimido de remédio engolido a seco. Eu estava inteiramente abarrotada dentro daquelas caixas de papelão, e o cárcere das suas paredes me sufocava. Tentei respirar fundo e senti algo entalado na garganta. Meu eu fracionado, engasgado, amassado e etiquetado. Para aonde vou? O papel rabiscado com o novo endereço em cima da mesa não dizia.

Mas autoconhecimento também liberta – entendi tempo depois. Desafoga o peito uma liberdade arrebatadora de finalmente entender que estamos presos à inconstância de ser o que somos. Quando o caminhão recolheu todas as caixas e estacionou em frente a um portão pouco habitual, que estampava o mesmo número rabiscado em meu bloco de anotações, entendi que logo os meus pedaços de eu’s estariam reunidos de novo. Porém agora eu sabia exatamente quem eu era, na indecência de cada fração e na essência do inteiro – e sabia ainda que dali a alguns instantes não saberia mais. Os risos que ri, os amores que amei, as lágrimas em que me afoguei, os portos que me distanciei, os abraços onde enterrei confiança, outros tantos de onde colhi desafeto… Estariam todos ali comigo, ou isso já não era mais eu? A dor vinha da descoberta do que eu já não era, ou da perplexidade do que poderia não ser mais? E então eu já não mais sabia se aquele solavanco no peito vinha da certeza de que tudo era passageiro, ou da incerteza do que compunha a corporeidade daquilo a que eu me habituara a chamar de tudo.

Mudança é privilégio – eu disse certa vez, sem saber que as lentas mudanças de espírito, e outras tantas avassaladoras e instantâneas, foram mais do que circunstâncias que precisaram ser vividas. Elas se tornaram meu eu. E, por serem eu, também estão fadadas a passar. Porque, ainda bem, é sempre possível mudar de novo. A ferida muda e vira cicatriz, a cicatriz muda e vira lição, a lição muda e vira a própria a construção da vida. O lagarta muda e vira casulo, o casulo muda e vira borboleta, a borboleta muda e vira metáfora. A metáfora muda e vira tinta eternizada debaixo da pele – porque, quando as mudanças deixam ir, elas também revelam o que fica.

Foi quando, enquanto desempacotava objetos de cozinha comprados especialmente para a nova morada, eu me dei conta de que – de fato – não existe o momento ideal em que nos encontramos preparados para receber aquilo que se transforma. O esforço para carregar as caixas e para sair do casulo naturalmente nos torna desprevenidos. Mas – por escolha ou imposição – a gente encara. E suporta. E sobrevive. E sorri. E se permite finalmente um pouco de orgulho por ser o que somos – com tudo o que deixamos pra trás e tudo o que acrescentamos. E por ter mudado então a gente dá graças – ao que se acredita sagrado, ou aos pares de mãos que dividiram os pesos da caixa – porque, quando as mudanças deixam ir, elas também revelam quem fica.

Agradeci sorrateiramente pelo eu que se formou enquanto estive distraída. Deixei um porta-guardanapos cair de volta dentro da caixa e sorri abobalhada para a parede branca à minha frente. Ela devolveu brancura, e o riso insistiu. Gargalhei tresvariada para o apartamento em partes vazio e gargalhei ainda mais ao ouvir o eco do meu próprio riso – era o meu novo eu respondendo que estava tudo bem? Gargalhamos juntos. Então puxei outra caixa onde uma etiqueta anunciava o aviso de “Frágil”. Rasguei-a com a força de um só gesto, e do pudor da nudez que me arrebatara ao fazer o processo inverso, descobri que nada sobrara. Bem sabia que, embora os últimos trechos houvessem me catalogado vastos calos nos pés, de frágil eu nada tinha. Desbravei o conteúdo dentro do papelão – o riso ainda estampado no rosto. Lembrei que sem o peso das caixas e o medo do casulo a gente nunca muda. Olhei para o teto, rindo para o meu mais novo céu. Quem nasceu com o dom das asas não esquece como se voa. Já era hora de ser meu recém-chegado eu. E então não ser mais. O instante é o meu novo lar.

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