Olhos abertos pra dentro

Tem dias que a gente acorda e não enxerga a luz do sol pelas frestas da janela. Mal nos damos conta, levantando automaticamente, ilusão de pés no chão. Água no rosto, água pro café, água nas plantas. Respirar fundo para não pensar nas comportas que guardam a viva água dentro do peito. E então a primeira hora é a mecânica esvaziada de pensamento: manteiga no pão, chuveiro no morno, louça no escorredor.

Mas a rotina tão familiar logo se mostra uma total desconhecida dentro da nossa própria casa. E nossa casa se revela um ponto cego no mundo. E nos descobrimos completos estranhos em nós mesmos. É que alguns dias nós acordamos abrindo os olhos pra dentro, e todo o viver à nossa volta se desmancha em completo desinteresse. As frases impressas no livro não dizem uma só palavra, o “bom dia” do colega de trabalho soa como um ruído distante, a comida no prato nos força a engolir as horas cruas.

O que se fez do tempo até aqui? O que será do tempo que restar? Fardos do passado, cenários imaginários do futuro, tudo se entrecruza e nada tem conexão – apenas o medo do que escapa entre os dedos. O que é a vida além da louça pra lavar e das plantas a regar? O que nos sobra da vida quando ela começa a se desvanecer, apagando-se dos olhos daqueles que amamos?

Tempo vivido nos atravessa violento. Tempo a viver se dissolve sem sentido. Linha do tempo nunca foi linear – novelo emaranhado de perguntas sem resposta ou razão. É assustador reconhecer a nossa infinita pequeneza no mundo, a completa insignificância daquilo que guardamos no ponto cego da alma. Nos vemos preenchidos de ausências, e ausentes de qualquer essência deixamos os sapatos do lado de fora da porta para entrar em casa ao fim do dia.

O dia em que acordamos abrindo os olhos pra dentro, e tudo se resumiu a tatear vazios. Embora cegos à sucessão de vida lá fora, parece que nunca antes enxergamos tudo de forma tão clara. É que de tão recorrente, parece cegueira ensaiada. E então seguimos tateando até encontrar o vazio da cama. E rezamos baixinho – também para o vazio – na esperança de que amanhã existam frechas de luz do sol pela janela.

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