Canção da lua e do mar

3932328728_6a7a701636Cheiro de mar. Cama de areia, beijo de sal e pôr do sol tocando música pra gente dançar. Violão solitário ouvindo as notas das ondas, vestido desatado vítima do desatino do vento, laranja-fogo em ebulição no céu. Na terra, brisa e suor entram em combustão – os sentidos queimam, o corpo quer.  É calor palpitando nas veias, é amor rebentando o coração, é torpor com sede de oceano. Na verdade, é lembrança. Agora, o mar tem cheiro de chacina – não sei se por culpa do sal ou da saudade. Faz do meu olfato abrigo e de lá sussurra baixinho que aquele barco batizado com o meu nome deve ter feito parada em outro porto. As palavras que você balbuciou quando disse que voltaria para me buscar parece que foram jogadas numa jangada sem rumo. As que a maré depositou cheias de espuma aos meus pés diziam que você nunca mais vai voltar.

Lua cheia. Guardei-a com cuidado na caixa de madeira que forjei para te presentear. Ensaiei as exatas palavras que usaria ao te entregar, e imaginei uma centena de vezes a expressão do teu rosto quando a abrisse. A lua inteira tua, eu inteira nua. E nós dois destinados a viver uma vida toda de luar. Lua cheia nos teus olhos. Pele alva cheia de lua. Eu escreveria sobre isso até o fim dos meus dias, meu bem. Cada movimento retido em minhas retinas. Poderia compor canções sobre o teu sorriso branco morrendo num beijo brando. Cada sensação tatuada no meu tato. Dos teus olhos não pediria farol, bastava um par de candeeiros na madrugada iluminando as notas da minha melodia. Eu te faria poesia, personagem vitalício do meu verso, prisioneiro preferido da minha métrica. Mas você não veio receber a lua, nem a morena destinada a ser tua – nem mesmo quando ambas se fizeram minguante. E a luz branca saindo pelas fendas de madeira parecia tão clara quanto a verdade – me mostrou o teu leme ao longe, a tua proa em prazer. Então, devolvi a lua ao céu. Antes de ela ir, um pequeno holofote se acendeu sobre palavras escondidas debaixo da esteira da varanda. Aquelas que diziam que você nunca mais vai voltar.

Lua cheia. Cheiro de mar. Eu planejava te roubar toda a beleza contida no universo, se por algum instante de descuido o teu querer quisesse ficar. Mas o horizonte foi o teu destino escolhido, e o pequeno sopro que dei em tuas velas foi o suficiente pra me deixar sem ar. No vazio que ficou quando você levantou âncora dos meus braços, agora cresce um deserto. O futuro que fizemos de bússola perdeu os ponteiros, e todos aqueles planos triviais não formam mais tripulação. Quando lágrimas afagaram os meus olhos, virei as costas para que você não pudesse ver eu me afogar. E então tenho andado por aí carregando esses olhos marejados, dois marujos perdidos em tempestade. Agora, as canções que tento compor não passam de um suspiro. Versos engasgados arranham a garganta. A poesia virou poeira. Dedos frios congelaram as notas do violão. A melodia morreu. E tudo aquilo que devia ser teu agora se desfaz em silêncio. Afundando no fundo mar. Sufocando no fundo coração.

E por isso eu sei que cada pontada que tenho sentido no peito é uma remada que teu braço conduz. É o oceano que fica cada vez maior entre nós – e ouvi dizer que ele gosta de brincar de infinito. Vez ou outra ainda abro a janela no meio da noite só pra ter certeza. Mas não há nada além da lua cheia. Do cheiro de mar. E de uma canção em dueto que diz que você nunca mais vai voltar.

Este texto faz parte de um projeto especial do Esquinas com canções de Chico Buarque e foi inspirado na música “Lua Cheia“.

Foto: Gisele Nobre

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