Um pedido de gente grande

Juro que não é uma vontade disfarçada de ganhar presentes, comer doces à vontade ou virar o centro das atenções. É algo realmente sério, e que por vezes me consome, essa coisa de querer voltar a ser criança. Só por hoje bastava: ter como única prioridade no dia arrumar os cachos da minha Barbie Sereia. Não me parece pedir demais: deixar de lado a faxina e me jogar no sofá para assistir pela décima segunda vez a fita cassete de “Elvira, a rainha das trevas”, comendo biscoito recheado ou banana amassada com leite em pó e Nescau. Queria apenas, ao menos por um único dia, que todas as minhas contas para pagar se resumissem nos 25 centavos que furtei da prateleira da minha mãe para comprar geladinho escondido. E os e-mails que preciso enviar voltassem a ser cartas escritas com caneta colorida em papel decorado. E a agenda de compromissos se transformasse num caderno de desenho, e o teclado do computador, num passe de mágica, virasse lápis de cor.

E então eu abraço uma nostalgia amarga dos meus patins coloridos, que hoje são tão velhos quanto os ônibus lotados que pego para chegar ao trabalho. E penso com certa amargura presa na garganta que poderia haver alguma diversão na correria da hora do almoço, como havia na porta de casa, brincando de “Sete Cacos”.  E o hino do “ono-um, ono-dois, ono-três” ainda ecoa de algum lugar da minha memória, enquanto me pergunto como um simples cordão de elástico podia arrancar tantas gargalhadas. E não me envergonho em dizer que por vezes sinto falta de apenas sentar em silêncio enquanto minha mãe penteasse os meus cabelos e gritar pelo meu pai toda vez em que algo desse errado. E, sim, lembro com carinho de quando a escova era microfone, a espuma do shampoo era a barba do Papai Noel e os bolinhos de areia, apetitosas guloseimas. Lembro – não sem engolir em seco – de um tempo em que eu tinha o dom de ver a beleza das coisas. Porque é isso que as crianças fazem: vivem a imaginação, sorriem pelos detalhes e sabem ser feliz com tão pouco.

E acho que é por isso que às vezes também sinto que ando cansada de não me restar tempo para ser mais eu. E tampouco alternativa para ser outra coisa senão aquilo que realmente preciso ser. Minha alma parece envelhecer dia após dia, e temo que os sonhos estejam ficando desbotados demais para causar alguma impressão. São as unhas por fazer, os papéis velhos dentro da bolsa, o cochilo na aula de Inglês, a pia entupida na área de serviço, o computador formatado há quatro meses que ainda guarda os arquivos na pasta de backup e aquele plano de fundo azul padrão do Windows. Tudo vai ficando pelo caminho e eu sigo em frente sem saber ao certo para onde. Ou por quê. E nessa trajetória, não se engane, os passos são incertos, o dinheiro sempre pouco, e os planos com os amigos traçados na mesa de bar – silencio a angústia – talvez nunca acontecerão.

Há a parte boa em ser gente grande, mas há dias que em esqueço completamente dela. Hoje eu só queria ter que me preocupar se o meu pai vai querer assistir ao jornal no horário de Chiquititas. Escrever no meu Diário do Mickey Mouse antes de dormir. Fazer as feridas desaparecerem com um simples band-aid decorado e me confortar nos braços do meu urso de pelúcia. E no dia seguinte, ter como único despertador a voz da minha mãe, dizendo que já se passam das 10 da manhã. Penso ainda que trocaria por um momento as aulas de marketing da pós-graduação pelas tardes do colégio, quando eu revisava a prova de português no intervalo e sonhava em ser o que sou hoje. Porque hoje… eu só queria de volta a doçura dos sonhos inocentes de outrora. O gosto do algodão-doce que ainda permeia a lembrança. E a tranquilidade que só aflora de verdade do sorriso de criança.

Imagem: reprodução.

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2 Comentários

  1. Emocionante, filha! As lágrimas inundaram meus olhos. Se você, tão nova, sente essa saudade, essa necessidade, imagina eu… Muito lindo o seu texto. Beijos

  2. Como consegue descrever tão bem os sentimentos que me atormentam ?
    Nos dias em que tenho muita responsabilidades do serviço e faculdade, gostaria de ter que me preocupar com a boneca que está doente. Quando tenho muito medo de algo, gostaria de correr para a saia da minha mãe e chorar sem ter que preocupar com o que os outros vão pensar. E tudo isso se torna mais forte no dia de hoje.
    Lindo texto Sâmia! O li mas “não sem engolir em seco”.

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