Tenha cuidado com os espinhos do outro

Há cactos decorando todos os cômodos do meu apartamento. Em diferentes tamanhos e formatos, repousam alegres sobre vasos coloridos. Às vezes, quando os coloco para tomar sol, o descuidado no manuseio faz com que minha mão se roce sem querer entre os espinhos. Basta um movimento leve e despretensioso, e então é inevitável: alguns deles ficam grudados na pele. Por menores e mais inofensivos que pareçam, sinto me espetarem o dedo. Mesmo quando não consigo vê-los, sei que estão lá: a agonia é a certeza de que algo me entrecorta. A dor é sutil, mas incômoda – tudo o que eu toco ao longo do dia me lembra de que há um espinho ali.

Existem traumas que são como pequenos espinhos. A gente pensa que se curou e que está imune ao seu impacto. A gente acredita que assumiu o controle e aprende a encará-los com certa insignificância. Até os perdemos de vista. Aí, num dia qualquer, quando achamos que estamos seguros daquela experiência ruim que ficou lá atrás, um fato corriqueiro vai nos empurrar novamente contra as feridas que ela nos abriu. E então vai voltar a doer. Talvez a gente não saiba explicar exatamente onde está a mágoa – mas vamos reconhecê-la ao primeiro toque. Talvez nossa queixa soe exagerada demais diante do pedacinho de espinho visível a olho nu – e só nós saberemos o tamanho da nossa dor.

Conheça os espinhos da pessoa com quem você se relaciona. Somos todos – também – frutos de uma bagagem de experiências, bem ou mal sucedidas. Dizer que não tem nada a ver com o que aconteceu antes de você chegar é negligenciar as vulnerabilidades do coração onde você escolheu fazer morada – mesmo com e apesar delas. É exigir ver a casa sempre arrumada, ignorando que em alguns momentos o preço disso seja esconder a sujeira debaixo do tapete. Não é sobre pagar pelos erros dos outros, mas sobre escolher ser curativo em vez de dedo na ferida. É lembrar que jardinagem é uma arte que se faz com muitas mãos, e quem escolhe cultivar amor precisa encarar a terra acumulada nas unhas e os espinhos escondidos na alma.

Ninguém espera que você cure, mas que você cuide. Ninguém vai te pedir para usar uma pinça ou fazer o truque com fita adesiva para remover esses traumas – essa é uma tarefa intransferível. Mas, na dança a dois, você vai descobrir que custa bem pouco coreografar pequenos passos fora do roteiro para não deixar que seu par se esbarre em alguns deles. Custa pouco e simboliza uma das maiores traduções do significado de querer bem. Há dores que podem até nos soar incompreensíveis, mas nem por isso deixam de ser contornáveis. Evitar machucar o outro quando temos um mapa do terreno de suas feridas também é nossa responsabilidade. Na jardinagem do amor, ser luva é ser leve. Afinal, para quem carrega cacto no peito, qualquer dor sutil de um pequeno espinho pode ser dor demais.

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