Essa dor também passa, menina

Eu queria poder apontar-te o prazo de validade da tua dor, menina. Feito alimento na prateleira do supermercado, onde é certo que o seu anúncio precisa estar claro. Queria garantir que se aproxima o encontro com tua paz e que para isso a contagem é regressiva, e não agressiva. Eu queria dizer-te que não é preciso esperar – abrir com minhas próprias mãos o teu peito e arrancar toda a angústia nele intrincada. Se eu pudesse, menina, despir-te-ia de todos os teus temores. Mas cá estou a te assistir em plena nudez, agachada contra o boxe do banheiro, lágrimas misturadas com o jato do chuveiro, dedos trêmulos enterrados no cabelo e olhos perdidos em tumidez.

Eu queria garantir que há medicamento para tua aflição, menina. Assim como há Anador numa manhã de ressaca, antibiótico para uma garganta inflamada, repouso em dias febris e curativo no dedão para a falta de habilidade na cozinha. Queria te fazer acreditar nesse velho clichê de que tempo é o melhor remédio – mas eu sei como o calendário tem zombado da tua paciência de forma tão cruel. Eu queria diagnosticar o mal do teu peito e contar-te em segredo como curá-lo. Se eu pudesse, menina, submeteria tua alma à homeopatia, a internação e bruxaria, a santo, astro e cirurgia. Mas cá estou a te assistir abrir a segunda carteira de cigarro, presa à esperança de que a nicotina dance com a dopamina e te dê alguns segundos de falsa libertação.

É que não há resposta pronta quando o grito vem de dentro. Não importa quantos vizinhos despertem com a agonia da tua voz, só tu conheces o teu cansaço. Quem poderá dizer, menina, qual peso tirar dos teus ombros, sem afetar o teu equilíbrio? Quem irá encorajar-te a colar os cacos em que te partiram, sem precisar esconder que tu podes cortar as pontas dos dedos no caminho? Quem te censurará o prazer do autoflagelo? Menina, os bem intencionados até tentam, mas ninguém irá conseguir olhar-te por dentro. Não há cartomante que confidencie a escolha certa, não há terapeuta que solucione planos frustrados, não há amiga que te convença a amar todos os teus pedaços, não há cachaça que esqueça saudade do que ficou do outro lado, não há poeta que diga – não sem antes mentir – que é possível sair de um amor inteiro.

E eu, menina, que sou apenas a tua imagem no espelho, só posso te pedir para suportar o dissabor desses olhos vermelhos. É que ninguém pode viver tua dor, senão tu mesma. E para que ela chegue ao fim, não há outra alternativa senão sentir – até se esgotar. Eu continuo sem poder apontar-te o prazo de validade dessa aflição, mas eu sei que, assim como um alimento numa prateleira de supermercado, nada dura para sempre. Também sei que nem todo caco é possível de ser remendado, mas há pedaços do nosso peito que têm o dom de se regenerar. Espera mais um pouco, eu sei que tu és paciente. Não te deixes intimidar pelas folhas do calendário – lembra que, no espaço do coração, tempo também é relativo.

É por que, daqui de fora, a gente pode apenas segurar tua mão. Jogar búzios, fazer poesia, terapia, oração. A gente pode te falar sobre a física da teoria da relatividade, da química da decomposição das moléculas dos alimentos, da biologia da multiplicação celular… Mas a gente sabe tão pouco, menina. Aí dentro, só tu conheces teu templo. Do tamanho da tua força és tu quem sabe. Então, permita-te o cansaço. Permita-te o choro, quiçá os soluços. Permita-te até o desespero. Mas não te deixes afogar em nenhuma dessas ondas. Nada de volta para a superfície. E faz algo que só tu podes fazer por ti: sobrevive. A vida é um mar aberto de imensidão de possibilidades – e isso não te livras das tempestades. Mas água vem, e água vai. Segura firme aí no teu barquinho, menina. Essa dor também passa.

Este texto foi escrito especialmente para minha coluna no E aí, guria?

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