Desculpa por ter te deixado enquanto ainda estava ao teu lado

te deixadoEu nunca tive realmente a intenção de folhear todos aqueles livros que peguei emprestados da tua prateleira. É que já fazia um tempo que eu andava impaciente demais para tuas resenhas literárias apaixonadas, cheias de recomendações. Vou devolver todos, juro. Venho apenas justificar a minha demora: dia desses, enquanto tomava um café na lanchonete em frente ao prédio da minha mãe – a tua preferida do bairro, apenas porque o troco vinha acompanhado por balas de menta -, ouvi algumas vozes estranhas falando sobre Drummond. Chegando em casa, caí na besteira de mergulhar naquelas poesias amareladas, e ouvi ele contar que a intensidade dos sentimentos tem o poder de eternizá-los. Descobri que você sempre esteve certa – eu deveria ter lido tudo isso mais cedo. Desculpa por ter te devolvido farsas quando você me presenteou com verdades.

Desculpa por todas as vezes em que engoli um elogio. Sexta-feira, enquanto eu me barbeava para ir desbravar o milésimo bar com os meus amigos, te vi surgir por detrás de mim no espelho naquele vestido azul, cor de céu. Quase te vi materializada à minha frente e deixei escapar um sorriso, mas era só uma lembrança da última vez em que saímos para dançar. Eu não te falei naquele dia o quanto eu te achava linda. Nem no anterior. Ou no antes desse. Quantas vezes eu deixei passar em branco todos os dias que a simples visão tua deixou meu coração mais colorido? O esboço do meu sorriso morreu quando lembrei que, naquela noite, ao fim da dança, eu preferi deixar a chateação do desentendimento dentro do táxi falar mais alto. E então foi só mais uma vez em que eu virei as costas e fui dormir, fazendo de conta que não te ouvia chorar baixinho.

Desculpa por todas as ausências que joguei em tuas costas. Eu nunca me preocupei com o peso que te causava, apenas no quanto isso me fazia sentir mais leve. Pelos dias difíceis em que você precisou de um cafuné e um chá de camomila, e eu não estive lá. Por todas as ligações que não fiz pra checar se estava tudo bem, e pelas que não atendi. Pelas noites em que tornei o meu orgulho maior que o bem-querer, e com ele atropelei os planos de calmaria do teu coração. Eu sempre soube que a responsabilidade deveria ser dividida a dois, mas ainda assim preferi me subtrair da bagunça que a gente virou. Foi mais fácil empurrar os cacos pra debaixo do tapete e te deixar tentando remendá-los sozinha. Pelas feridas em eles abriram em teus dedos, e também em teu peito, e por não ter ajudado nem mesmo com os curativos. Pelas vezes em que fui espada enquanto deveria ter sido escudo, desculpa.

Semana passada recebi uma ligação da tia Celi, e ela perguntou por você. Envergonhou-se logo em seguida, pois ainda não sabia que o cheiro do teu shampoo não habita mais o meu banheiro. Eu tentei contornar o constrangimento, e então foi inevitável: lembramos, aos risos, de quando ela reuniu familiares e amigos no último aniversário, e todos assistiram você ministrar uma aula de cultura oriental após um engraçadinho fazer alguma piada tosca sobre japoneses, chineses e coreanos. Teus olhos ficam ainda mais apertadinhos quando você se irrita, e isso sempre me comoveu e me fascinou na mesma intensidade. Mas é a forma como sua voz se impõe, quando você defende algo em que acredita, que me faz vibrar. É como se, por alguns instantes, o mundo inteiro se desdobrasse aos teus pés. Não se culpe. E me desculpe. Você não se tornou menos interessante com o passar do tempo. Eu que me acomodei tanto ao fato de ter você, que passei a acreditar que a nossa sintonia era comum. Eu esqueci o quanto a admiração que tenho por você é rara. E tenho me lembrado agora… Em cada noite em que inicio uma conversa com uma nova garota em um novo bar, eu me lembro um pouco de você. E preciso dizer: desculpa por todas as vezes em que fui indiferente ao fato de você ser diferente de tudo o que eu já esperei viver em meu melhor sonho.

Desculpa por ter te deixado enquanto ainda estava ao teu lado. Talvez eu tenha sido egoísta demais para adiar o momento de ver as tuas camisetas de humor sarcástico deixarem a minha gaveta. Talvez eu tenha sido cruel o bastante pra não admitir que amor só é bonito quando é pleno – ou poesia. Pela metade, amor é ácido que corrói de dentro pra fora – a gente tenta disfarçar forjando um sorriso e forçando uma conversa trivial, mas, por dentro, a dor não usa máscaras. Sem rimas, amor é descompasso que a gente tenta equilibrar mesmo sabendo que o tropeço é inevitável – porque verso sozinho não escreve estrofe. Ou talvez o meu distanciamento foi pura covardia em caminhar pelos trechos mais difíceis, e eu nunca tivesse realmente desejado sair do teu lado.

Eu sei que agora existe esse cara estranho dividindo a tua cama. Livre para mergulhar em teus livros e navegar com os dedos pelo mar negro dos teus cabelos. Imagino que ele esteja enfeitiçado enquanto ouve a explicação que descreve a história por trás de cada tatuagem estampada em teu corpo. Ainda que ele não seja fã de literatura brasileira, vai ouvir com atenção você desvendar as metáforas de Machado e os cotidianos de Clarice. Na primeira crise de riso que vocês tiverem juntos, ele vai rir mesmo após já ter cessado a graça, apenas por te ver inteiramente vermelha e chorando pelos olhos cerrados. Quando você continuar dormindo após o terceiro toque do despertador, ele vai sentir pena de te acordar, e ficará ali ao teu lado aproveitando o sossego para esquecer os olhos em teu rosto. Com certeza ele vai pensar no quanto você é linda – e nem precisa ter conhecido o vestido azul, cor de céu, pra isso. A tua visão é um lembrete de que o universo inteiro cabe nos olhos e é mais bonito do que poderia supor a imaginação. E o som dessas palavras acompanhadas por um beijo será o teu verdadeiro despertador.

Eu sei que agora existe esse cara estranho dividindo a tua vida. Tenho me perguntado se ele consegue sequer imaginar a sorte que tem. Tomara que ele não precise de um nó na garganta debaixo de um livro de Drummond para descobrir. Porque, depois que eu te deixei, descobri que ao teu lado é o melhor lugar onde já estive.

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