Eu não posso voltar a ser tua, porque eu comecei a ser minha

Vê: o sol que nasce lá fora já não é mais o mesmo. As cortinas foram trocadas ou redesenhaste o céu?, tu me perguntarás atônito. Eu sorrirei com os olhos pacientes e a ternura costumeira quando disser que em ambos os lados reside a resposta. Meu endereço já não é mais o mesmo, agora tu sabes. Mas não apenas as paredes do apartamento estão diferentes – o universo do outro lado também se alterou por inteiro. Comprei até uma nova armação de óculos, gostaste? – não obstante ouvir o médico apontar que minha hipermetropia estagnou. É que, toda noite, quando me debruço sobre a cidade por esse parapeito, tenho a impressão de que meus olhos também mudaram – não seria mais simples, meu bem, do que me convencer de que foi o céu que trocou de lugar enquanto meu olhar permaneceu inerte? De repente parece que não há astros nem espetáculos: as estrelas tornaram-se apenas reflexos das luzes do alto dos prédios. A vida é crua, e nosso coração finge não vê-la por escolher o caminho mais fácil. Sempre foi o mundo assim, ou minhas retinas o desnudaram? Então cuspirás com tua fria franqueza: estás a desvairar.

Estás a desvairar, eu engolirei com um solavanco no peito. Que tolo tu, achar que desvario é admirar a transformação que me transpassa. Ah, meu bem, se tu soubesses o quão perto eu realmente cheguei de deixar escapar pelos dedos a última fresta de luz e perder a mim mesma… Loucura maior foi enfrentar os dias de mais devassa angústia e permanecer sã. Tu não estiveste aqui para segurar minha mão quando a boca travou e a voz não conseguiu dizer o que ainda não tinha a consciência de indizível – agora já sei. Para fazer teus polegares de para-brisas e com eles afastar as lágrimas que brotaram com a cor do sangue das palavras que naturalmente abortei. Tu não estivesse aqui para me fazer acreditar que havia cura, e que minha enfermidade seria poesia e jamais crônica – já não sei mais. E que mesmo na mais trôpega debilidade eu teria a ti para me fortalecer até me reconstruir. Por onde tu andaste, meu bem? As promessas que fizeste ainda vagueiam no escuro tentando encontrar uma direção. Mas não eu – eu rabisquei outro sol, rabisco todo dia e sob ele me aninho tentando não me deixar endurecer. Andei eu também sem rumo – tu justificarás com voz mansa, quase num pedido de desculpa, mas nós dois sabemos que o remorso nunca te alcançou. E então eu vou te agradecer com a mais límpida sinceridade que já me aconteceu – dessas que encaro quase como um dever, uma sina irrecusável de abrir o peito por inteiro para quem dele já fez também sincera morada – vou te agradecer com a mais límpida sinceridade que já me aconteceu por ter partido. Foi vivendo a tua ausência que eu descobri que me basto.

Eu descobri que me basto – tu farás de conta que não ouviste. E sem qualquer traço de soberba continuarei a te atualizar sobre os livros que li, as músicas que escutei e os caminhos que me aventurei nesses últimos anos. Poderei até falar sobre as paixões que ardi, se tu assim julgares por bem. Confesso que ainda não perdi essa mania de querer compartilhar contigo a minha sorte – te contei quando mudei de endereço?-, tão acostumada que andei com teus braços ao alcance da minha entrega. Mas, sobre não te encontrar, há muito igualmente já me habituei. 0 tempo em que estiveste longe foi cruel, mas também crucial. Eu me alimentei de tuas faltas até não aguentar a náusea e te vomitar por completo. Exceto a ternura, essa permanece costurada no tecido do meu estômago – te sorrirei novamente com o olhar, ignorando a gastrite. E então te narrarei mais uma descoberta: a do dia em que me vi no corpo de uma criança com joelho ralado que se esquece da dor sempre que tem a chance de correr pelo parque outra vez. Mas, um tombo por cima do outro, e minhas pernas já não são as mesmas. Perdeste o dom de amar?, me confrontarás, mal intencionado. Ah, não! Meu coração ainda sorri feito menino na hora do recreio, mas meus passos ficaram lentos, mais pelo cansaço do que pela desconfiança. Volta a ser minha, e eu te ajudo a caminhar – segurarás minha mão sem medo, tecendo mais uma promessa. Enquanto entrelaças os dedos aos meus, como tantas vezes antes já o fizeste, tu me revelarás enfim o propósito dessa visita. Ainda tens a habilidade de me provocar, reconhecerei ao primeiro toque. O calor do teu corpo eu sei de cor, mas não conheço porém – descobrirei, para minha própria surpresa, deixando escapar um espanto infantil – não conheço porém o caminho de volta. Me perdoe, meu bem, mas eu já não posso mais ser tua.

Eu já não posso mais ser tua, escutarás com olhos rígidos, os mesmos olhos que por tanto tempo me fizeram recuar contra as paredes de mim mesma. Ora, para eu voltar ao que em ti ainda é teu, precisaria também eu continuar sendo o que era. Mas como voltar a ser aquela, se agora eu já sou esta? Como tu esperas que eu seja a mesma, se até o universo emoldurado pela minha janela já se reinventou? Tudo passa, meu bem. Talvez o amor ainda goste de brincar de eterno, talvez ele ainda se demore mais um pouco que as estrelas, talvez ainda existam centelhas dele aqui dentro – centenas, talvez. Mas o que fazemos com esse amor são escolhas que, para escolhê-las, basta a coragem (e tu conheces o tamanho da minha força.) Durante o tempo em que ficaste longe – mudei os óculos de grau, reparaste? – eu entendi que tu nunca de fato me tiveste. Numa dessas noites debruçada sobre a cidade por esse parapeito, eu descobri o quanto me pertenço.

É que tudo passa, meu bem – as tempestades, as estrelas, os prédios, as pessoas – e eu permaneço. Como nunca antes pude perceber? Eu sou minha e em mim permaneço. Eu me habito e me mudo em mim mesma – ora por escolha, ora por distração. Mas eu continuo sendo minha. E, em mim, finalmente encontrei um lugar grande o bastante onde eu não precise me encolher para me caber por completo – e nem temer um empurrão invisível que me encurrala contra as minhas próprias paredes. Eu me tenho por inteira. Eu sou minha melhor casa e minha melhor inquilina, e tenho me ocupado tanto comigo que talvez não haja espaço para mais ninguém (principalmente alguéns que insistem em apontar reformas das quais não preciso e negligenciar auxílio nos reparos realmente necessários.) Não, eu não posso voltar a ser tua. Porque eu descobri que sou minha. E desde que tive consciência da posse sobre mim mesma, eu não desejei pertencer a mais ninguém. Desculpa, meu bem, mas andaste tão longe que não tive antes como te contar que eu mudei de endereço, de óculos e de ser. Vê: o sol que nasce aqui dentro já não é mais o mesmo.

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