Boneca de Porcelana

Quem olhasse seu rosto cor de neve, dificilmente perceberia a sombra escondida em sua face – os olhinhos de vidro pareciam sempre sorrir. O tricô do vestido aparentava ter sido propositalmente bordado para combinar com as bochechas rosadas. Pelos ombros pequenos, roçavam-se louros cachos. Bracinhos arrebitados, dando a impressão de que estão prestes a agarrar algo. Seria o mundo? Seria possível?

A boneca de porcelana era tudo o que ela já vira de mais parecido consigo mesma. Sua expressão dura finalmente achara uma cara-metade. Um consolo. Claro que ela nunca tivera a delicadeza daqueles traços, tampouco a graciosidade de sua postura, recostada docemente na cabeceira da cama. Mas o ser boneca era o que tanto ela sentia. Tanto e sempre. Por trás daqueles sorridentes olhos de vidro, ela sabia existir um segredo. O meio riso desenhado pelos lábios de tinta vermelha guardava palavras que nunca seriam ditas. Só ela sabia. Só ela entendia.

Ela era uma boneca de porcelana. Podia lembrar cada palavra engolida junto com a refeição diária – nenhum barulho sobre a mesa. Rasgaram-lhe a garganta feito punhal afiado. Mas ninguém parecia notar. Seus contornos mantinham-se impassíveis. Quando preciso, ainda sorria. Mas de sua prateleira, guardava tudo. O que via, o que sentia, o que só ela parecia perceber. Deixavam cicatrizes. Mas os outros enxergavam apenas a louça. Sentia-se como um bloco de gelo que teve o direito de ser esculpido uma única vez. E de tão longa convivência, o silencio tornara-se então velho amigo. Com ele aprendeu a manter seus olhos rasos. Não podia deixar que através deles, chegassem nas profundezas de su’alma. Não podia. Não queria.

Em noites de sono mal dormido, o ruído do lápis manchando as folhas de papel pálido com desabafos soltos quebrava o silêncio. As emoções engavetadas esquentavam o seu ego. O gelo derretia: o quarto estava escuro, não havia com o que se preocupar. Os pensamentos fervilhavam, numa confusão agonizante. Lágrimas frias vinham aliviar sua face. Todas as suas certezas se desmanchavam, viravam cinzas. E amor que lhe preenchia o peito (ainda preenchia?)… ah, jamais saberia dizer! O mundo lá fora parecia quieto… Mas o seu mundo se agitava numa rotação tão veloz, que ela só podia ver em sua frente borrões de cores. Nada fazia sentido. Nada era tudo o que ela tinha.

Em momentos como esse, ela pensava que os homens são pequenos demais. Muito maior é o seu coração. Eles nada podem contra suas armadilhas. É como tentar andar em um labirinto de olhos vendados. Ela se convencia de que não conseguiria achar a saída. De onde estava, mergulhada nas sombras dos seus sentimentos, ela podia sentir um olhar de vidro lhe fixar da cabeceira da cama. Um olhar mudo, bastava a compreensão. A visão daqueles bracinhos arrebitados lhe confortava. Até nas pontas daqueles dedinhos estáticos morava a compreensão. O desejo por um abraço – toda a sua precisão.  E as dúvidas que lhe preenchiam o peito (ainda preenchiam!)… ah, jamais saberia responder! Dormiria nesse devaneio. Quando voltaria para a prateleira? Quando voltaria para a vida?

 

Texto originalmente publicado no site Revertério, em 2008.

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