A história de um amor sem fim

*Para Pri

A pele morena e os contornos bem feitos faziam jus aos elogios que ouvia pela avenida. De bochechas e quadris fartos, passava com um remelexo sem igual. Ela era alta, forte, robusta. “A grandona”, como costumavam chamá-la. Pelos olhos que por vezes saltavam de órbita, ela estampava sem pudores o brilho da felicidade. Mas contam que o mais apaixonante mesmo sempre foi o seu sorriso. Sorriso que voa livre, não importa o temporal – ele sempre coloriu a vastidão do céu. E assim, livre, contagiava quem estivesse por perto, invasor, mal educado. Um sorriso invejável, feliz, branco, puro. O seu sorriso.

Mas também contam que se em metade ela era pureza, em outra metade era insanidade. Confesso: várias vezes quis eu pular a parte da pureza, para tudo poder contar sobre a insanidade. Mas se vissem apenas insanidade, o que diriam então sobre a sua pureza? Poderiam até pensar que estou eu a mentir! Então, para fim de conversa – e posto que as coloquei como metades – lhes darei igual espaço.

A sua pureza, acima de tudo, sempre pareceu óbvia a quem estava ao seu lado: a pureza do seu amor. Amor que nasce de onde menos se imagina. Amor aceito e amado. Amor dado, que não espera nada em troca. Amor por amar. A sua insanidade era antes um complemento do seu amor. Tão feliz, o seu lado insano! Pois já que entramos na insanidade, vos contarei em segredo: dizem que de sua boca se ouviam as pornografias de todo e pior tipo que se tem conhecimento. Dizem também que ela tinha o hábito de falar com partes da anatomia humana pouco convencionais em uma conversa comum. Dizem muita coisa sobre ela, é bem verdade. E a verdade? Resta acreditar no que dizem. E o que dizem mesmo é que era a hora mais feliz do dia, o seu lado insano. Era a parte mais feliz da história, o seu amor.

E ainda sobre suas metades, contam que ela era assim: meia menina, meia mulher. Menina com medo de palhaço tomando o cuidado de passar longe das lojas de eletrodomésticos em tempos de promoção. Mulher de cabeça aberta, idéias livres, pulso firme. Menina destrambelhada que tropeça nas próprias pernas com as compras de supermercado. Mulher sensível ao vaivém da vida: pronta para aconselhar, pronta para decidir. Ela era assim mesmo – num tamanho de mulherio daquele, havia de ter muito espaço para tanta meninice. Tão meigo e certeiro, único e inevitável, esse seu jeito de menina-mulher.

Ela foi mãe muito antes de sonhar em ser. Foi irmã não concebida em tantos ventres. Foi o poder de fazer graça nas horas de maior tristeza ou preocupação. Ela foi as risadas mais gostosas ecoadas pelas paredes de uma república no centro da cidade. A voz de Vinícius soando em uma canção antiga. Ela foi o estrogonofe salgado, os dizeres da avó, a história do macaco da Angola. Ela foi o sonho mais bonito, mais do que um dia qualquer um ousou em sonhar.

Dizem que foi o dia mais triste, o anúncio da sua partida. Quantos quartos trancados terão sido afogados em lágrimas escondidas? Dizem que se lembram dela por corredores, escadas, bares, lanchonetes e ruas. E por churrascos onde se ouve a música do mamoeiro. Por todos os lugares onde ela fez história. E por todos em que ela nunca sonhou estar.

Também já ouvi dizer que a distância é dolorosa, mas é apenas distância. A ausência física não muda o coração sempre cheio. Contam que hoje, ao pensar nela, cada um revela o seu sorriso mais bonito e cuidadosamente guardado. Porque agora, além de bochechas e quadris, ela carrega também a cintura farta de uma felicidade viva que cresce a cada dia. Felicidade que deixou de ser apenas dela e tornou-se de todos. Pais e mães que ficaram longe, mas que sempre serão pais e mães. Afinal, como estava a dizer, distância é apenas distância – portanto impotente perante aos verdadeiros laços de parentesco (mesmo quando eles são de mentirinha).

Eis que esta história termina aqui. Mais uma vez confesso: foi preciso olhos marejados e nós na garganta para terminá-la. Mas tive o cuidado de não contá-la por linhas tristes, pelo contrário. Ainda assim me disseram que esta é uma história estranha, posto que não termina com final feliz. Quanta ignorância! Claro que ela não há de terminar com um final feliz. Esta, pois, é a história de um amor sem fim.

 

Texto originalmente publicado no site Revertério, em 2009.

 

Foto: arquivo pessoal.

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