Alma de passarinho

passarinhoEu te falei, moça, que os olhos não alcançam onde dobra a estrada. Que não faz sentido sofrer pelo caminho desconhecido, pois da lama nasce a grama e cresce a flor. Que o longe fica mais perto quando descobrimos que o que nos basta nunca deixou a morada em nosso peito. Eu te aconselhei a confiar em tuas asas mais que em teus passos, lembra? É que pernas fraquejam e pés compõem tropeços. Mas alma de passarinho sempre volta a cantar quando dança com o vento. E eu sei, moça, que cê foi feita pra voar.

Eu entendo, moça, que a gente guarda sinas difíceis de evitar. Dentre vícios viscerais; santos, signos e ancestrais; pressa pra ir e preço a pagar. Guarda comida no congelador e roupa que não serve mais. Mas eu sei, moça, que cê não consegue guardar sentimento pra depois. É essa tua mania de intensidade, de não caber em nenhuma metade, de viver a sensação até ela se esgotar. Por vezes, isso te prende num conta-gotas; em outras tantas, te faz transbordar. Não adianta tentar disfarces, teus olhos são transparentes. Do medo, ao amor, à dor, à indiferença – em tudo eu te vejo intensa.

Mas é verdade que essa tua sina já deixou sinais difíceis de apagar. Eu sei que por trás desse vestido de algodão há duras cicatrizes do tempo passado. Vazios dos cacos em que te partiram e jamais puderam ser remendados. Moça, o que somos senão flores nascidas do pior que tentaram fazer de nós? Rega teu jardim. Carrega teus espinhos. Na tua bagagem segura a coragem que te fez ser a mulher que cê se tornou. Dia se põe, dia nasce, e a gente põe pra fora o que nos destruiu e renasce – quantas vezes preciso for.

E o amanhã realmente se tornou outro dia, e esse dia então é hoje. Agora é o tempo que se vive, daqui a pouco já é tempo novo. As palavras ditas, as promessas feitas, os pensamentos esculpidos – se nada mais faz sentido, se reinventa. A mudança é um dos privilégios de quem vive. E coração com medo também é coração com vida. Ora, então encara esse temor pelo que vem em seguida. Logo, o caminho vai voltar a dobrar a estrada. Teus olhos não podem ver o que está além, mas teus ombros sabem o que são capazes de suportar. Correr pro raso ou correr o risco só dependem de você.

Moça, me escuta mais uma vez: confia em tuas asas. O mundo lá fora é grande demais pra cê ficar presa a esse mesmo ninho. Deixa o vento te carregar. Voa, passarinho!

Imagem: divulgação

Comments

comments

Leave a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *