Ainda bem que você não ficou

estAinda bem que você não ficou, menino. Eu devia ter te agradecido por sair de mansinho no meio da madrugada. Seria loucura acordar com tua respiração alta dançando sobre o piso escorregadio dos meus ouvidos outra vez. Se eu olhasse de novo teu rosto sereno amassado pelo encontro com o travesseiro, tua barba desalinhada com o decalque dos meus dedos, teu perfume brincando de se esconder em meu lençol… Quem iria me impedir de continuar sonhando depois de acordar? Quando você me desse um sorriso sonolento, me afagasse os cabelos e me afogasse em teu mar de pelos negros, como eu colocaria os pés de novo no chão? Quem iria me dizer que eu era só mais um barco passageiro na tua praia, quando minhas velas quisessem descansar?

Ainda bem que você não voltou mais, menino. Algo na tua presença já começava a me amedrontar – e não houve tempo de entender se era o ruído dos teus passos na chegada ou o barulho estridente da tua ausência. Me amedrontava aquele olhar me esperando do outro lado do portão, que me despia antes mesmo de eu recuperar o fôlego após os lances de escada. Eu desviava os olhos fingindo procurar a chave certa, mas nunca consegui evitar a nudez. Esse teu olhar me assustou desde a primeira vez, menino. Acho que sussurrei isso num sonho certa vez. O que eu nunca te contei é que medo é o alimento das borboletas que voam pelo meu estômago. E como eu temi esse dom que teu olhar carrega de me encurralar contra a parede de mim mesma! Enquanto abria o cadeado, eu encarava por trás das lentes de grau o meu próprio medo de querer pousar. Quem iria me alertar que eu era só mais uma onda na tua superfície, quando meu peito chamasse pro fundo do mar?

Ainda bem que você não ligou mais, menino. Quando eu ouvisse tua voz mansa, talvez eu não lembrasse que era tolice fazer mais um convite. Quem sabe o que aconteceria se você parasse em meu portão outra vez… Na verdade, eu já começava a decorar o nosso roteiro: a gente passearia de mãos dadas pelas notícias do dia. Entraria pela curva dos causos de infância. Faria parada no silêncio das bocas, onde os corpos conversam entre si. E terminaria a noite com a aspereza dos teus dedos pelas minhas costas nuas e a leveza de piadas ruins. Quem iria me convencer de que aquilo era só mais uma aventura de marinheiro, quando meu desejo pedisse pra ancorar? Em vez disso, eu aprenderia mais alguns dos teus apelidos. Saberia o que dizem os autores dos teus livros preferidos. Desenharia carinho com as unhas no volume da tua barba. Respiraria o teu cheiro no meu lençol. E te pediria pra ficar.

Mas ainda bem que você não ficou, menino. Deus me livre de voltar a acreditar em portos seguros outra vez.

Imagem: divulgação.

Comments

comments

Leave a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *