Acreditava ser chuvisco, descobri-me tempestade

Perdi as contas de quantas enchentes me obriguei a engolir antes de desaguar. Foi preciso um golpe duro nas comportas do meu peito para eu jorrar de dentro de mim. Saltei dos meus próprios olhos, toda a minha essência molhada. Espantei-me com o tanto de matéria líquida que ainda me mantinha erguida. Quando perdi a compostura, desabei de uma só vez. Escorri descontrolada, fugindo de mim mesma, desembocando escada abaixo como onda veloz.

Tomei a rua, invadi casas, arrastei carros. Só pude aceitar o destino de engolir o que me atravessava o caminho quando não mais havia em mim o que ser atravessado – desintegrei-me por inteira. Oh, perdoem-me todos! Era pra ser só uma lágrima – justifico agora, envergonhada. Mas então eu, que acreditava ser chuvisco, descobri-me tempestade. Peço perdão pelos danos. Tão desatenta estava com o que acontecia em minhas profundezas, só me dei conta do temporal quando eu já havia desabado violenta. Perdoem-me mais uma vez os carros e casas e árvores e animais e pessoas, tamanho o prejuízo. E por tanta destruição que me causei a mim mesma, pela primeira vez ensaiarei um pedido de perdão ao espelho.

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