A menina e o mundo

Foi dali, daquele porta-retrato de moldura bronzeada, que ela olhou-me pela primeira vez. Despida de qualquer pudor, não me escondia suas feições mal desenhadas. Não me deixei intimidar, cheguei mais perto. O vestido de estampa cafona situava-me entre o cômico e o familiar. Mas foi em seus olhos, naqueles olhos de jabuticaba ainda no pé, que ela mostrou-me o mundo. Absorta, eu conseguia vê-lo: prepotente, irônico, sedutor. Eu sabia que ele não tinha consciência de mim, mas isso agora não importava: eu queria o mundo. Mas a pequenez daquele olhar roubava-me a sua plenitude. E, com a malícia de quem já viu o mundo, logo eu saberia que aqueles olhos apertados em um rosto feio eram antes um disfarce bem forjado. Num súbito espanto, lembrei-me que ela sempre fora muito boa em se esconder.

E, no êxtase de quem descobre a efemeridade da vida, lembrei-me também do sabor de um sorvete barato, do cheiro de um travesseiro velho, dos sorrisos dispersados por ventania do destino. Lembrei-me de quando vi brotar ramos de felicidades de um terreno desconhecido. Dos portos-seguros que já caíram por terra, e dos que ameaçam ruir. Das contas para pagar, da cama por fazer, dos sonhos coloridos de outrora que ainda escorregam pelas paredes de um quarto desabitado. Mas hoje eu vi o mundo, e talvez agora não haja mais tempo para lembranças. Nem para medos, inseguranças ou nostalgia.

Não há mais que se entortar a caligrafia por conta de olhos marejados. As linhas vão firmes. Eu vou firme. E a menina de cabelos enrolados emoldurada no bronze lembrou-me algo muito mais próximo – talvez, quem sabe, não tivesse sido a primeira vez que a vi. Talvez a levasse comigo, de alguma forma. Mas para pensar nisso também não há mais tempo. O mundo me espera, e espera de mim. E a vida, menina, não tem segredos. A vida há apenas que se viver.

 

Texto originalmente publicado no site Revertério.

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