Vai ver se eu to na esquina

Se a luz da primeira janela do segundo andar estiver acesa, então eu realmente estou. As paredes do lado de fora são sujas, mas dentro, há um mural de fotografias enchendo o ambiente de sorrisos e cheiro de hidratante impregnado nos lençóis da cama. No chão, abraçada por um ângulo de 90 graus, está uma fileira de sapatilhas que usei durante a semana e tive preguiça de guardar. Do outro lado, escondidas entre o guarda-roupas e a parede, descansam blusas suadas que percorreram a cidade nos últimos dias.

Eu vivo nessa esquina. Com a luz acesa, a minha bagunça e sempre usando aquele mesmo hidratante. Às vezes sentada na cama com um pijama velho e um computador cor-de-rosa. Se o tempo estiver um pouco quente, a janela estará dois dedos aberta. Se for quinta-feira, estarei ouvindo aquela música que não sei o que canta, mas me agrada a melodia, vinda do bar da rua defronte.  Se forem dias de TPM, haverá papéis de chocolate espalhados pelo chão.

Eu vivo vigiando essa esquina. Com óculos de grau caídos pelo nariz e cabelos desgrenhados, debruçada na janela. Observando os rapazes com fones de ouvidos, o som da propaganda eleitoral, as moças deixando a panificadora em frente, os meninos de rua pedindo o seu troco. Os carros, as motos, a gente. Não se eu já te contei, mas gosto de ficar ali, com o rosto endurecendo no frio e os olhos queimando nas chamas do fogo do malabares no sinal. Gosto de por alguns minutos absorver o tudo que vem do nada; só ouvir, ver e sentir. Faz bem algumas doses diárias de sinestesia. Depois, aperta o peito guardar tanta vida sem sentido.

Vai ver se eu to esquina. Se a luz estiver apagada, toca a companhia e fica me esperando lá embaixo, com os braços cruzados, um olhar torto, um sorriso no bolso e um amor na mochila. Diz que o amanhã está tranquilo e não há com o que se preocupar. Que essa coisa de ser gente grande é uma grande mentira que fizeram a gente crer.  E no final, ainda seremos os mesmos meninos dividindo o balanço, e as únicas feridas que estarão abertas são as que o Merthiolate pode curar. Quando eu te abraçar, conta baixinho que aquele sonho foi verdade: ninguém roubou as cores da primavera, apenas as guardaram com cuidado na caixinha de lápis de cor. E se a minha respiração começar a ficar lenta no teu pescoço, afaga meus cabelos e canta uma canção pra me fazer dormir.

Vai ver se eu to na esquina, e no caminho, se não for muito incômodo, passa na pastelaria aqui ao lado. Mas dessa vez eu não vou querer aquele pastel de frango, calabresa, queijo e cebola (bem frita, por favor). Dessa vez, pergunta ao rapaz de boné vermelho se ele tem uma bebida quente, dessas que esquentam o coração. Um chocolate, porque eu estou de TPM. E um pouco de sentido pra tudo isso, se o dinheiro der.

 

Esquinas é um projeto meu, de Mariana Lacerda, Mário Ribeiro e Patrick Moraes. Se você ainda não conhece, vai lá se encontrar no meio de frases perpendiculares, de ruas por onde sinalizam poesias e atravessam contos. Agora, eu estou contando minhas estórias por lá. Vem curtir esse canto com a gente!  :]

 

Imagem: reprodução.

 

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