Sim, nós somos ateus

simnossomosateus1O que eu, José Saramago, Vinícius de Moraes, Charles Chaplin, Mark Zuckerberg, Nando Reis, Sigmund Freud, Camila Pitanga, Oscar Niemeyer e Fernando Henrique Cardoso podemos ter em comum? Nós fazemos da população mundial que não crê em Deus. No Brasil, esse número está em torno de 7%. Algo pequeno, mas significativo. Assim como as outras minorias, o ateísmo ainda tem que lidar com o preconceito e a não-aceitação. E – ironicamente – com a incredulidade. Sim, quase todos aqueles que acreditam em um deus não conseguem acreditar que eu não acredite em nenhum deles. É aí que tudo começa.

Eu entendo a necessidade que os teus têm de crer em algo sobrenatural que lhes explique o desconhecido. Se o famoso tsunami que deixou milhares de mortos na Ásia em 2004 tivesse atingido a Grécia de 400 a.C. , certamente os gregos atribuiriam a catástrofe a um ataque de fúria de Posêidon, deus dos mares. Hoje, sabemos que suas causas são os abalos sísmicos decorrentes da movimentação das placas tectônicas. O mesmo aconteceu com Zeus, deus grego dos raios; Amon-Rá, deus egípcio do sol; ou Saturno, deus romano da agricultura.

Crença é crença. Ainda consigo ver os princípios das religiões politeístas da Antiguidade regendo a fé atual: uma explicação para os mistérios, um pilar para se apoiar nas dificuldades, um lugar de onde se esperar a superação, abrigo ou consolo. Eu não apenas entendo a dependência da crença como, sobretudo, respeito-a. Convivo com ela pacificamente, nas diferentes religiões e olhares da minha mãe, irmãs, amigos, colegas de trabalho ou desconhecidos. Nunca tentei convencer alguém a desacreditar, mesmo tendo que lidar com investidas de evangelização inúmeras vezes.  Até mesmo porque eu sei que, assim como muitas formas de crença promovem a ignorância e a alienação, outras tornam as pessoas melhores. E no fim das contas, pra mim é isso o que importa: ser o melhor que se pode ser, independente do que te sustenta para isso.

O que acontece é que, diferente da maioria, eu não preciso um deus para me preencher lacunas desconhecidas ou uma força suprema para me ancorar. E – além de alguns poucos amigos – não necessito de alguém, dotado do divino, para me acolher nos momentos de sufoco. Para mim tudo é bastante simples: somando-se a toda uma herança e construção social, o que eu tenho é por puro mérito ou sorte. O que eu já perdi, foi por falta minha, ou azar. Não acredito que exista um ser superior que tenha um plano pra mim e me deu o livre-arbítrio para que eu possa escolher por realizá-lo. Não consigo imaginar qual livre-arbítrio tem uma criança nascida com menos de dois quilos na África, onde um quarto não ultrapassa os cinco anos de idade. Tampouco o plano que se tem para ela. Ou do menino que cresce nas ruas de Vitória da Conquista, valendo-se de esmolas e furtos, para matar a fome, e cheirando cola durante o inverno, para afastar o frio. Isso pra mim tem outro nome, que não é livre-arbítrio: quase uma predestinação. Eu não me acho melhor que a criança africana ou o menino de rua conquistense, para ser escolhida para ter moradia, alimentação, educação e pequenos luxos. E nem consigo supor qual é o critério divino que colocou cada um em seu lugar.

A essa altura, vou deixar vocês finalmente confrontarem: “Se não existe Deus, como surgiu o universo e a vida?”. E então eu lhes apresentarei ao meu amigo Darwin e a sua teoria da evolução (que, inclusive, já foi aceita pela Igreja Católica). “E de onde veio o Big Bang, do nada?”. Ué, e Deus veio de onde? Não há resposta alguma além da fé. Mas, com a ciência debruçada sobre isso (vide os avanços das pesquisas sobre a “partícula divina”), não duvido que chegará o dia em que ela conseguirá explicar o que é esse “nada” de onde viemos, assim como Benjamin Franklin um dia desmascarou Zeus.

Aliás, sempre que falo sobre isso, lembro-me da espetacular comparação que Jostein Gaarder faz a respeito em seu livro O Mundo de Sofia. Ele diz que o surgimento do universo e da vida foi como um mágico tirando um coelho da cartola. Assim, o mundo – o grande coelho – surgiu misteriosamente do chapéu do mágico. E nós – a vida – viemos arraigados aos pelos do coelho. Ousados, alguns tentam subir até a ponta dos pelos para olhar nos olhos do mágico e descobrir sua verdadeira identidade. A empreitada até hoje não obteve sucesso. E então, a grande maioria fica lá embaixo, aprende a chamar o mágico de “Deus” e adorá-lo à sua maneira. Eu sei bem o que é isso – nasci ouvindo “Deus te proteja”, “fica com Deus”, “Deus castiga”. Fui batizada pelo catolicismo antes mesmo de conseguir segurar um garfo sozinha. Frequentei a Igreja e o catecismo da mesma forma que frequentei a escola. Aprendi que era preciso orar todas as noites, assim como escovar os dentes. Fui incentivada a desfilar em procissões fantasiada de anjo, durante feriados santos, e também a fazer aulas karatê. Acreditei em Jesus Cristo e em Papai Noel. Até que chegou o tempo de questionar, e houve o dia em que eu quis subir sozinha nos pelos do coelho e confrontar o mágico.  E o que eu descobri lá em cima foi que a minha crença durante todos os anos passados era algo puramente cultural. E onde eu achava que existia fé surgiu a ânsia pela liberdade. Foi aí que, lá de cima, tomei coragem de falar para mim mesma e deixar ecoar pelo resto universo: sim, eu sou ateia.

Ainda é difícil para um ateu assumir-se. A ignorância, o preconceito, a não-aceitação e a falta de respeito incomodam demais. Ao contrário do que muitos insinuam em sua cegueira inculta, o ateísmo não é uma doença que precisa de cura. Ateus são pessoas como todas as outras, que fazem suas escolhas entre ter que ceder o lugar para um idoso no ônibus, jogar lixo na rua, doar as roupas que não servem mais. E se esforçam para ser bons pais, bons filhos, bons esposos, bons amigos e bons profissionais. Para manter o colesterol baixo e a faxina em dias. Ateus são jornalistas, escritores, músicos, atores, psicanalistas, arquitetos, Presidentes da República. Gente que ajuda a revolucionar a ciência, a arte e a tecnologia. Que tenta fazer algo melhor para si e pelos outros. Que paga suas contas, cuida do animal de estimação, anseia por um fim de semana com a família e quebra a dieta por um sorvete de baunilha. E diante de tanta normalidade, o mínimo que se espera é respeito. Não é preciso nem mesmo compreensão. E muito menos do padre Quevedo empunhando uma cruz num ritual de exorcismo.

Enfim, a única coisa em que eu realmente acredito é que não importa quantos argumentos racionais darão os ateus, e com quantos outros rebaterão os crentes. No fim das contas, tudo é questão de fé – ou falta dela. É ela quem dá vida a Deus, Maomé, Krishna, Oxum, espíritos, pentagramas, Lúcifer, trevo-de-quatro-folhas, pomba-gira, São Longuinho, lobisomem, fadinha do dente ou isola-três-vezes-na-madeira. Tudo é real para quem acredita, e o mesmo vale para o contrário. Se não há fé, não há conversa, santo ou água benta que resolva.

E é por isso que eu não me fio a nenhum poder divino. Aprendi a lidar com os acasos felizes e infelizes da vida. Acostumei-me a lutar sozinha, sem ninguém em outro plano para interceder por mim. E a sentir, também só, as delícias e crueldades do mundo. Apenas assim consigo deitar minha cabeça no travesseiro, toda noite, e dormir em paz.

É possível eu mude de ideia algum dia, quando minha alma for condenada unanimemente no Juízo Final. Ou quem sabe não tão tarde, quando eu esbarrar em Posêidon durante algum mergulho pelo litoral neste verão. E tomara que nesse dia eu tenha a sorte de não encontrá-lo furioso. Rezem por mim!

 

Este texto foi publicado originalmente em 2009, no site reverterio.com, um antigo projeto de colegas da faculdade de Jornalismo. Na época, foi divulgada uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, que apontou os ateus como o grupo de pessoas mais odiadas no Brasil, seguido pelo de usuário de drogas, garotos de programas e transexuais. Quatro anos depois, resolvo fazer algumas adaptações no texto e publicá-lo novamente. 12 de fevereiro foi propositalmente escolhido por ser o Dia do Orgulho de ser Ateu. A data é uma homenagem ao aniversário do pai do evolucionismo, Charles Darwin.

Então, venho a público novamente assumir o meu orgulho em ser ateia. Eu não acredito em deus, mas posso afirmar orgulhosamente que não semeio ódio por ninguém. Sou pelo amor, pela liberdade e pelo respeito. E você?

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2 Comentários

  1. Bonita você é, aliás é linda, mas de certa forma fui preconceituoso, achei que era só isso, que inclusive não é tão incomum na minha cidade natal, Amargosa. Mas encontro aqui algo extra, um talento também (De clique em clique no face, achei este blog). Em resumo e em clichê, um belo frasco mas desta vez com um belíssimo conteúdo. Continue explorando esse seu talento, é sem dúvidas uma benção divina, com respeito, mas desconsiderando sua crença ateísta e relevando minha crença cristã para afirmar isso.
    Não sou evangélico e nem ao menos católico, mas me considero um cristão, não frequento igrejas, pelo menos, até então… Talvez algumas perguntas para evangélicos e pregadores eu fiz, para tirar dúvidas, questionamentos e alimentar uma de minhas principais características, a curiosidade. Foi inclusive essa característica que me trouxe aqui, e fui presenteado hoje, adorei seus contos mesmo que minhas leituras normalmente girem em torno de artigos informativos e científicos. Bjim e sucesso!

  2. Nossa! Como pode alguém com tão pouca idade escrever tão bem? Seu texto traduz muita coisa que penso e acredito também. Parabéns!

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