Quando você quiser partir

embora

Por favor, não acenda a luz. Espera a minha respiração ficar pesada em teu peito e levanta no escuro, de fininho. Você bem sabe que a demora é pequena. A direção para a porta e os móveis no caminho você conhece de cor. Quando você quiser partir, tenta não esbarrar em nenhum deles. Os ruídos do teu adeus farão rasgos em meus ouvidos. Mas, se por acaso deixar um porta-retrato cair enquanto tateia a prateleira em busca da chave do carro, não, não acenda a luz. Deixa meus cacos no caminho, no escuro. E fecha a porta em silêncio.

Quando você quiser partir, por favor, tenha pressa. Levanta a cabeça e acelera o ritmo dos passos, caminhando em frente, sem descansar. Corre até falhar o fôlego e os pés calejarem, para onde meus olhos sempre farão desencontro. Apaga tuas pegadas no caminho, feito evidências de um crime. Não deixa vestígios, nem pedaços, nem meias caídas detrás da cama, porque qualquer pequeno sinal teu será uma lembrança a me matar outra vez. Se você partir, me deixa a chance de renascer algum dia. Eu perdoo o teu crime, desde que o golpe seja misericordioso: me estilhaça o peito de uma só vez, com a sinceridade mais cruel que puder. E não olha pra trás.

Antes, lembra-se das camisas abrigadas em meus cabides. Tenha cuidado ao dobrá-las, pois estão bem passadas. Não adianta levar uma por uma, na esperança de que eu não perceba as tuas pequenas ausências. No espaço dos teus vazios, por menores que sejam, nascem feridas. Colecionar as tuas distâncias tem sido o hobby mais doloroso que eu já conheci. Então, quando você quiser partir, simplesmente vai. Arruma uma mala enquanto eu estiver fora e coloca nela tudo o que tiver teus traços, teus laços e teu cheiro. A réplica da Tarsila na parede da sala, as embalagens de chiclete no criado-mudo, as conversas na madrugada, a fome no meu corpo, o sentido nos meus passos. Leva a casa de quintal grande onde sonhei nós dois. Leva meu norte.

Mas, por favor, me deixa a serenidade dos dias. Guarda numa das minhas gavetas ao menos um pedaço dessa certeza gostosa de que, no fim, tudo acabará bem. Deixa a sensação de completude que me toma sempre que teu nariz se roça em meu pescoço antes de dormir. Faz de conta que esqueceu emaranhada no lençol, sei lá. Leva o teu porto, mas deixa eu acreditar que ainda estou segura. Diz que eu vou conseguir ancorar em outro corpo com a mesma pureza que me aninho ao teu. E que a água a salgar meus olhos tristes é só o respingo de mais uma tempestade do mar. Me deixa chão.

Agora, se os ventos fortes levarem tua agonia, se teu peito se encher de calmaria, se tua dúvida for carregada pelas ondas… Se você não quiser partir, meu bem, então deixa eu silenciar o despertador e descansa ao meu lado por mais dez minutos. Me puxa pra um abraço e sussurra que tudo não passou de um sonho ruim. Fica pra ducha, pra omelete, pra sempre. Respira fundo quando eu te afogar com o meu bem querer, porque ele me transborda a alma e não se contém mais nas comportas dos planos pro próximo fim de semana. Quando você quiser ficar, só fica se for pra vida inteira. Meu amor não cabe num espaço menor do que o da eternidade.

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