Como é fácil amar o mar

Ela sempre amou o mar. Tinha aquele amor disfarçado de raiva toda vez que as ondas lhe arrastavam para longe quando o seu corpo flutuava feliz, transformando a brincadeira em bagunça. E também pelo sabor da água salgada que insistia em entrar pelas suas narinas, arrancando-lhe uma careta, só para provar que era diferente de tudo o que ela já havia provado. Amava o mar que existia dentro das conchinhas, quando lhes encostava no  ouvido. Ou quando ele se aproximava de onde estava sentada construindo o seu castelo de areia, e voltava rápido ameaçando levar consigo o seu chinelo cor-de-rosa, propondo ali um pega-pega desleal. E porque mar rima com amar, e durante a sua infância era uma das combinações que mais gostava de rabiscar no caderno pequeno de espiral.

Ela sempre amou o mar. Porque é dele esse poder meio estranho de abrir as comportas da sua imaginação e deixar desaguar ali os seus sonhos mais doces, como um rio sem curso, num fenômeno que as ciências jamais haviam prestado atenção. Podia passar um dia inteiro ali, queimando ao sol forte, descansando sob a sombra de uma nuvem, ou sentindo a brisa da tardinha arrepiando-lhe os pelos devagar – simplesmente imaginando. Era como se cada grão de areia ao seu redor fosse a possibilidade de algo que poderia dar certo. Como se nada, nem mesmo um vento forte ou um dragão, pudesse derrubar o seu castelo. Porque o mar lhe trazia essa fantasia de acreditar que o infinito cabia em seus olhos. E que assim como um punhado de areia, milhares de sonhos – reais e palpáveis – poderiam estar seguros em suas mãos.

Ela sempre amou o mar. E dentre os motivos que foi colecionando para isso, descobriu que o maior de todos era porque ele simplesmente estava lá. Assim como o mar lhe fazia sonhadora, também levava de volta os seus sonhos abortados. Essa mistura de água, sal e areia parecia esfoliar a sua alma e energizar o seu corpo. Os planos frustrados, amores rompidos, perdas irreversíveis… todo o peso dos seus ombros podia ser depositado ali, como uma oferenda tosca à beira da praia. Ela jurava até mesmo poder sentir exatamente qual era a onda que estava vindo buscar de volta, e lhe deixava um sorriso torto.

Ela ama o mar porque ele parece lhe ensinar algo que seu pai e sua mãe talvez não tiveram coragem: é preciso abrir mão de vez em quando. De um sonho, de um sorriso, de um plano ou de uma pessoa. Aqueles que são ousados demais não podem conseguir exatamente tudo o que querem – porque é impossível ter o mundo inteiro só para si. Então, sempre que algo não dá certo, ela vai respirar maresia e tomar um banho de sal. Deixa lá as angústias. E volta com algo novo reluzindo em algum lugar da sua imaginação – porque não importa quantas mágoas você tenha para entregar ao mar, ele sempre vai te fazer acreditar novamente que o infinito é possível.

Hoje, ela só queria ver o mar.

 

Foto: arquivo pessoal.

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1 Comentário

  1. Belo texto, parabéns! Ele me lembra o ensaio ” Do Mar Bem Perto ” do livro “Núpcias, O Verão.” de A. Camus.

    Esse trecho é sensacional: “Ela ama o mar porque ele parece lhe ensinar algo que seu pai e sua mãe talvez não tiveram coragem: é preciso abrir mão de vez em quando. De um sonho, de um sorriso, de um plano ou de uma pessoa. ”

    Acho digno, parabéns novamente! rs

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