Cenas do que ficou

Os olhos ainda ardem sob a cortina de poeira. À medida que o véu de partículas douradas revela os fragmentos do que ficou, a visão enevoada balbucia o tamanho do caos. O mundo virou pelo avesso, e eu permaneço no mesmo lugar. Não sei se o terremoto já terminou, ou se meu corpo se equilibrou ao tremor. É certo que algo ainda vibra por aqui: chão ou coração?

Ao longe, ressoa o gemido débil do alarme de segurança. Eu queria lhe repreender pelo atraso, mas, ao contrário do terreno do peito, meus lábios não se movem. Aperto os olhos em busca de clareza – as certezas alicerçadas de outrora devem estar soterradas n’algum lugar. Inerte, não me arrisco a iniciar a busca. É certo que na confusão algo escorregou pelas pontas dos meus dedos: decisão ou direção?

Eu olho para os pés e não consigo enxergar meus passos. Terra firme já se fora, engolida pelo abalo sísmico. Abalada, cismo em buscar algum sentido na desordem. Com qual intensidade a terra mergulhou em si mesma? Com qual magnitude eu me perdi dentro de mim? Richter não responde. Então eu escorrego com maldosa inocência pelos escombros. Talvez, no caminho, a sorte combine um encontro da minha passada em descompasso ao desenho do teu rastro. Talvez ainda, por coincidência, seja nas exatas coordenadas onde eu decidi reconstruir lar. E quem sabe então o relógio interrompa o raciocínio, sussurrando que é hora de refazer a rotina.

Enquanto isso, eu te carrego soterrado nas minhas retinas. Sorrateiras, elas só esperam as pálpebras se fecharem como cortinas para – desafiando a ordem natural do espetáculo – te revelar. Eu finjo piscar olhos irritadiços por conta da poeira, mas a verdade é que estou apenas me refugiando em mim mesma para, por alguns segundos, te ver de novo.

É porque, sempre que eu fecho os olhos, o mundo corre numa frenética troca de cenários, empurrando tudo para o seu lugar. Roupa no varal, café no coador, peito cheio de amor e ombros dispostos a lhe suportar. Lá fora, a bagunça de pó e concreto é varrida por grama verde, como é o meu descanso quando teu nariz está apenas a alguns centímetros do meu. Flores coloridas acordam tímidas, para lembrar o plano dos confetes. No quintal, o perfume das plantas se roçam em meu nariz como faz o teu cheiro. Repare que eu continuo vivendo a minha vida encenando que não te conheço, mas, nos bastidores, tenho decorado secretamente o meu roteiro com vestígios teus.

Abro os olhos. De soslaio, o teto me devolve um olhar de reprovação. O caos continua lá fora e, em vez do alarme, alguém me alerta que é em demasia tarde para tentar se abrigar no porão. De nada adianta depois que o terremoto passou, escuto o murmúrio. Mas, aqui embaixo, me aconchego em teimosia. Engulo o silêncio como se fosse parte da dramaturgia – não ouso contar que não estou a me esconder do tremor lá fora, e sim do temor aqui dentro. Quem sabe os medos se distraiam com os destroços e não me encontrem, quem sabe as feridas fiquem lá fora perdidas, quem sabe a interrogação não passe de atuação, quem sabe aqui debaixo não exista espaço para mais nada além do meu corpo imóvel – e de um sonho bom.

Não é preciso outro alerta, veja bem. No fundo, eu sei que não adianta faz-de-conta quando uma placa tectônica se move no peito – teatros e terremotos não combinam nem em poesia, afinal. Não é que eu tenha deixado de gostar de ficção, mas já não tenho mais idade pra acreditar nela. Eu sei que, cedo ou tarde, será preciso deixar de encenar no porão pra voltar a encarar a bagunça. Mas hoje eu só quero mirar o teto outra vez. Fechar os olhos. Viver essa cena. E acreditar que isso basta.

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