As verdades que eu não te contei

silencio090712A verdade é que não foi o teu cabelo desgrenhado que roubou o meu riso na primeira vez em que te vi, amarrando o cadarço no banco da praça enquanto o vento brincava de espalhar os teus papéis. Tinha tudo pra eu achar graça do teu desjeito, mas essa história foi só pra esconder que a culpa sempre foi dos teus olhos. Temi que você me achasse boba demais ao confessar, mas, no instante em que você levantou a cabeça e me pegou em flagrante, meus lábios já te obedeciam involuntariamente. Eu sorri. Passei todo esse tempo responsabilizando as estampas das tuas camisetas, o teu sotaque sulista e essa mania irreverente de levantar as sobrancelhas ao demonstrar interesse. Mas, na verdade, sempre foram os teus olhos – eles têm o dom de fazer cócegas em minha alma. Não importam os motivos que eu aponte, o meu sorriso pra você vem de dentro – teus olhos plantam uma dúzia deles toda vez que se descansam sobre os meus.

A verdade é que eu tive certo desapontamento na primeira vez em que li García Márquez. Eu sei, você jamais suportaria me assistir desenhar a mínima crítica ao seu autor preferido, depois de passar tantas tardes entusiasmado criando suspense sobre as aventuras de Nasar. Também precisei esconder: nunca aprendi a contar os pontos do Campeonato Brasileiro, mas me recusei a assumir isso diante da sua quinta explicação. O consolo após a derrota do Grêmio, porém, foi sincero. Foi sincera ainda a expectativa pra conhecer a tua coleção de discos antigos. Nunca tive coragem de contar, porém, que prefiro Maroon 5 a Beatles. Não quis parecer estúpida demais diante das tuas referências musicais.

A verdade é que eu gosto de toda a nossa selvageria. Do jeito primitivo que você me devora. Da fome que as minhas unhas têm da tua pele. Do lençol limpo e dos nomes sujos. Mas gosto ainda mais da simplicidade do teu corpo estendido sobre o meu. Gosto de te sentir devagar – é quando posso escutar todas as minhas pulsações sussurrando desejo. Gosto da temperatura da tua pele lambendo o meu suor. Da tua respiração ofegante arrepiando os pelos da minha nuca. Do teu cheiro aproveitando a distração pra construir lar no meu olfato. Nunca te entreguei essas palavras, mas, em todas as vezes que você se recostou em meu peito, temi que fosse possível escutá-las.

A verdade é eu já sei que você penteia o cabelo pra trás, molha a escova de dente antes de colocar a pasta e sempre calça primeiro o pé direito. Aperta várias vezes a tecla do backspace pra apagar a frase de um e-mail, mesmo sabendo que é mais rápido mantê-la pressionada. Memorizei as tuas cicatrizes e bermudas prediletas. Reconheço a tua caligrafia e sintomas de ciúmes. Às vezes, forço certo desinteresse pra não te assustar. Pergunto qual programa você quer assistir, já apertando o controle remoto disfarçadamente em direção ao canal sobre ecologia. Eu forjo pequenas mentiras a cada vez que você me pergunta por que te olho demoradamente. O fato é que eu gosto de guardar pedaços teus. É só pra não te perder de vista depois que você vai embora.

A verdade é que meu coração nunca foi estático. Ele é elástico, e vai sempre mais longe quando os batimentos ensaiam velocidade. Tentei te fazer acreditar que eu havia desacreditado do amor. Mais uma religião falida que não me convence – ensaiei várias vezes, soberba. Mas, sempre que vi tuas sobrancelhas se erguendo antes de pronunciar essas palavras, o frio na minha barriga anunciou que havia um culto se formando dentro de mim. Não sou chegada a oração – sobre isso não menti – mas em meu coração ressoa a prece de que não adianta resistir depois que a alma foi entregue. Não sobra escolhas, tudo se resume a sentir. Amor exige fé cega.

Assim como exige que a gente ande pé após pé sobre uma corda bamba. Mas manter o equilíbrio entre um passo e outro enquanto se faz malabarismo com ações e emoções nunca foi o meu forte. É por isso que eu passei todo esse tempo me refugiando no terreno do não-dito, me protegendo com silêncios, te entregando pequenas farsas. Sou a criança que não gosta de circo, veja bem. Sempre que me encorajam a ir em frente e dar o primeiro passo sobre a corda, eu recuo e fujo do espetáculo. Minhas pernas já bambeiam por natureza, e as cicatrizes desenhadas pelo chão me fizeram ter medo de altura. Acredite: eu não suportaria mais nenhuma queda.

Como também não suporto mais esse jogo de esconde-esconde. Por isso estou aqui, encerrando as nossas brincadeiras. Te deixo com as verdades que me recuso a viver. Então, me deixa com a vontade de voltar sozinha para casa. E com a certeza de que ficarei melhor assim: sem preces, sem preços e sem você.

E, se é pra falar mesmo a verdade, essa foi a minha última mentira.

 

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3 Comentários

  1. Parabéns! Ótimo texto.
    Acompanho suas estorias desde a época do revertério. ( É… tem tempo, rs.)
    Cada vez melhor, continue assim!

    Obs: Eu sei que pode parecer sem sentido, mas lendo o texto lembrei daquela música do Leoni – As cartas que eu não mando. Parece que resolveu enviá-las! rs

  2. Menina, que sensibilidade incrível! Este é o segundo texto seu que leio (o primeiro foi no CSV) e estou com o coração preenchido!
    Parabéns!

  3. Como vc é maravilhosa, menina!
    Estou apaixonada por cada texto seu, até onde li, e com muita inveja desse dom, confesso!
    Linda! Fascinante!

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