O que tu não sabe, morena


Sabe, morena, confesso que fiquei surpreso com a tua reaparição. (Confesso também que o meu coração disparou quando vi os teus cabelos longos sacudindo ao longe, naquele gingado que é só teu…) Andei pensando, não tem muito sentido você admitir agora que fez besteira. Você faz isso desde o dia em que eu te conheci, cortando sol o apressada com tua saia florida e postura ousada de algoz. (Não sei se eu já tive oportunidade de te dizer, mas desde a primeira vez eu tive fome desse teu corpo bem feito e cheiro de rosa no pé…) Mas você faz tudo errado. E eu, o que eu faço com tantos pedidos de desculpas? Eles não levam a nada, se você quer saber. Essa coisa de ferida e cicatriz é tudo verdade. Como é mesmo que dizem? A ferida uma hora se fecha, mas a cicatriz é a lembrança eterna da dor. Erros podem até ter perdão, morena, mas eles nunca têm realmente conserto. Além disso, é tarde, sabe?

Vê, morena, essa caixa de ferramentas? Foi do meu pai. Quando eu era criança, costumava brincar com elas, dizendo-me um cientista inteligente que iria fazer robôs com latas de leite ninho. Olha só essas chaves e pregos e martelos e coisas que até hoje não aprendi o nome… Se eu pudesse, morena, te deitaria naquela mesa e passaria um dia inteiro com essas ferramentas nas mãos, consertando os teus defeitos. Desenroscaria teus vícios, acertaria tuas manias, bateria um prego em teus medos e poliria o teu coração… tudo ficaria em seu devido lugar. Seria um dia árduo de trabalho, talvez até dois. Depois, me dedicaria a escavar os teus erros, saboreando a lentidão em que eles seriam transformados em pó, totalmente inofensivos. Então eu abriria a janela do meu quarto e os sopraria para bem longe, com um alívio que eu nunca conseguiria descrever nem na minha melhor inspiração. Mas tudo ainda faz parte da minha ficção infantil. Além disso, é tarde, vê?

Escuta, morena, eu sempre te amei acima de todas as tuas falhas. A culpa não é minha e, no fundo, sei que você entende. Eu tive esperança de um dia poder ajustar esse teu jeito desarrumado à minha vida. Mas eu devia saber que você não é uma lata de alumínio pronta pra ser moldada ao meu querer. (Ainda que eu só tenha desejado o melhor …) Essa conversa de sentir falta, morena, tudo isso ainda mexe comigo. Eu não gosto de confessar, mas por aqui tem se passado a mesma coisa. Só que agora não adianta insistir. Eu te falei tantas vezes, lembra? Que só brincar de amor não sustenta o tempo. Que é preciso levar a sério quando se quer durar. Chega uma hora que a gente precisa aprender a ser pro outro, compreende agora? Mas não, agora não adianta. Escuta, é tarde.

Por isso vai, morena. Volta a tocar tua vida com tua saia florida e todas as tuas besteiras. Um dia se eu vir teus cabelos longos sacudindo ao longe, em um gingado diferente, é sinal que tu achou o teu próprio conserto. Aí quem sabe, morena, se a gente se encontrar num desses becos sem saída… a gente descubra que só há uma saída pra nós dois.

 

Foto: arquivo pessoal.

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