Crônica a uma flor

11750682_959927437382288_753343428708024257_nMinha mãe nasceu junto com a chegada da primavera. Sua presença foi sentida como um anúncio. Ela tem o hábito de sorrir largo e colorido. Tem cheirinho de lavanda, feito pétala. Ela é MPB, vestido longo de tecido e pingente de Nossa Senhora. É brisa e ventania. De cabeça erguida e tronco firme, sustenta o peso de muitos galhos e a leveza de suas folhas. É unha feita em frente à televisão. É conversa pelos cotovelos, todas carregadas de encenações. Ela é norte, bússola e âncora. Carrega uma coragem bonita de ser quem ela é. Fala o que pensa, cospe as mágoas, deixa tudo em pratos limpos. Eu sempre desejei ter um pouco dessa sua fluidez. Da sua transparência e obstinação. Da calmaria da sua sombra. Ela é sabor de lar.

Minha mãe é virginiana nata. Basta que um dentre a centena de anjos de porcelana que decoram a sala esteja posicionado em ângulo diferente do habitual para o seu radar apitar. Tudo deve estar arrumado e organizado com louvor. Se alguma visita está prestes a chegar em casa, então, é montada uma operação de guerra. E ela é uma excelente comandante, assumo. Quando está um pouco nervosa, ela troca os nomes das três filhas. Mas, misteriosamente, nós sempre sabemos com quem ela está realmente falando. Aos 14 anos, quando pedi para escrever com giz de cera nas paredes do meu quarto, achei que a tinha condenado ao desgosto eterno. Mas, com muito esforço, ela cedeu. E, por sorte, aprovou o resultado. Doze anos após eu ter saído de casa, quando vou visitá-la em alguns fins de semana, no máximo ela fecha a porta do meu quarto pelo menos umas cinco vezes, “pra ninguém ver a bagunça”. E durante todo esse tempo, ela ainda me ensina a fazer molho branco por telefone e passa receita de chá para tosse por whatsapp. Tudo minimamente detalhado. Ela é força motriz.

Minha mãe é professora por vocação. Ela se doa tão lindamente ao que faz que nem percebe o quanto dela é transmitido naquelas lições. Seus alunos e ex-alunos estão por toda a parte. Não há uma única vez em que eu saia à rua com ela e não escute um “Oi, pró!”. São chuvas de sorrisos e acenos.Todos a amam. É porque ela nunca se contentou apenas com a luz do conhecimento – ela quer ser a doçura do incentivo, o braço amigo, afago e dureza sempre na dosagem exata. Minha mãe também foi aluna. Depois dos 40, decidiu que ia entrar para a faculdade, na mesma época em que eu iria fazer vestibular. Estudamos juntas. Depois veio a pós-graduação, os cursos de extensão e madrugadas perdidas em frente ao computador. Ela é orgulho que transborda o peito.

Minha mãe sempre foi minha inspiração. Com ela, aprendi sobre persistência, integridade, humanidade e respeito. Entendi sobre escolhas e consequências. Conheci a importância da confiança. Dela, herdei o hábito de balançar a perna antes de dormir. A cabeça de vento que me faz ser campeã na arte de queimar panelas é a mesma que já fez ela deixar dezenas de panos de prato pegarem fogo. De sua estante, herdei também muitos dos livros que li durante a adolescência. Se eu fechar bem os olhos, ainda posso sentir o cheiro das páginas amarelas dos Machados de Assis e Josés de Alencar. Assim como ela, comecei a dar aulas de reforço escolar ainda cedo, para ganhar um trocado. Quando finalmente comprei o meu primeiro livro (um Paulo Coelho, confesso), rabisquei na contracapa o mesmo que eu via escrito em todos os seus exemplares: “Este livro pertence à minha coleção. Devolva-me!” Obviamente eu não tinha uma coleção de livros. Mas tinha uma coleção de passos que eu que desejava seguir. Ela é exemplo.

Foi minha mãe, aliás, quem me ensinou a ler. Ainda guardo a recordação do dia em a cartilha branca estampando ABC entrou lá em casa, em seus braços. Ainda faltavam alguns meses para eu entrar na escola, mas a mistura de ansiedade e curiosidade não contiveram a espera – folheei-a, muitas e muitas vezes, tentando decifrar o que estava além dos desenhos. Então, em uma tarde ensolarada, ela se sentou comigo no sofá debaixo da janela e me ensinou o que eram as vogais. Em seguida, vieram as consoantes. Logo depois, as primeiras sílabas. Tarde após tarde, vencemos aquela cartilha. Depois, antes que ano letivo realmente começasse, ela pacientemente apagou todos os exercícios que eu havia respondido a lápis. Eu nem me importei em ter que fazer tudo de novo – minha fome pelas letras havia apenas começado. Minha mãe me presenteou com um dos maiores prazeres que eu pude conhecer. Ela é a doação mais generosa.

Minha mãe também foi a minha primeira leitora. Alguns anos após me alfabetizar ali, na nossa pequena sala, ela adentrou com um caderno de arame nu. Os “101 Dálmatas” sorriam na capa. Foi ali que, escondido, eu rabisquei minhas primeiras poesias. As rimas infantis soavam cômicas, mas eu mantinha o peito inflado de orgulho do meu trabalho. Uma noite, enquanto ela tomava banho, eu invadi o banheiro esbaforida, perguntando se ela queria ouvir meus poemas. Do outro lado do boxe, pacientemente, ela me incentivou a lê-los. Eu recitei um por um, impondo minha voz ao barulho d’água, triunfante. Ela não riu em momento algum. Elogiou com maestria aqueles versos bobos e me motivou a continuar escrevendo. Mal sabia ela que estava abrindo as portas para a maior paixão que eu carregaria pela vida. E eu continuei. Pelos poemas tolos, pelos diários, pelas cartas, pelas crônicas, pelas aulas de Redação, pela faculdade de Jornalismo, pelo Revertério, pelo Estórias pra Contar… Sem saber por que ou para que escrevo. Eu ainda continuo, mãe. E, hoje, eu escrevo para você.

É porque – devido à minha coleção de silêncios – você talvez não saiba que, mesmo depois de tanto tempo sem bater à porta do seu quarto em madrugadas de pesadelo, sua voz continua sendo o meu maior refúgio. Você é a melhor representação daquela velha e boa metáfora do porto seguro (e eu sou completamente apaixonada por metáforas). Quando não é o bastante, você é colete de salva-vidas e bote de resgate também. Suas palavras têm o poder de me atravessar feito água fria em queimadura. É seu o alívio onde minha alma repousa com mais tranquilidade. E, até hoje, ainda posso te ver com aquela mesma paciência e borracha na mão, pronta para me ajudar a abrir as portas, corrigir os erros e apagar as linhas que precisam de recomeço. Você sempre acreditou em mim, mais do que eu mesma. E eu, que acredito em tão pouca coisa, tenho a certeza de que não é possível existir um ser humano mais fantástico. Se eu pudesse, embrulharia numa caixinha com fitas de seda todo o bem que existe nesse mundo e entregaria em tuas mãos. Porque você é a flor mais linda da primavera. E o maior amor que eu já conheci.

Feliz aniversário, mãe!

“Eu tenho muitos amigos. Eu tenho discos e livros. Mas, quando eu mais preciso, eu só tenho você.”
“Eu tenho muitos amigos. Eu tenho discos e livros. Mas, quando eu mais preciso, eu só tenho você.”

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