Canção de ninar

Para com isso, menino! Quantas vezes vou precisar falar que tu não deves deixar teus brinquedos espalhados nessa bagunça? Organiza teus pertences, coloca-os em ordem. Por que esse hábito vil de tratar tuas próprias coisas com tamanha indiferença? Não pisa, menino, ou tu vais quebrar o brinquedo! Achas que sempre que quiseres, terás um novo? Ou pensas que ele resistirá ao teu temperamento durante o tempo que julgares necessário? Vamos, faz alguma coisa, ou verás em breve o quão mal essa apatia pode te trazer. Espero que eu não precise falar de novo, menino: aprende a cuidar do que é teu.

Não faz isso, menino! Quantas vezes vou precisar repetir para não destruíres esse canteiro de flores? Dai jeito nas tuas palavras cortantes e mãos sujas que se divertem arrancando raízes. Não consegues enxergar que são essas flores que perfumam teu dia e colorem tua vida? Tu estás matando-as aos poucos, não vês? A cada pétala que cai ao chão por tua culpa, está indo embora um pouco da harmonia e equilíbrio que sustentam o teu próprio sorriso.  Um dia, eles podem desaparecer para sempre. Além do mais, podes acabar espetando teu dedo. Conheces a dor de um espinho? E de uma saudade? Espero não ter que repetir, menino: jamais dê o que não gostarias de receber.

Levanta-te daí, menino! Quantas vezes vou precisar lembrar que esse chão frio congela também o coração? No dia em que tu pegares uma doença, dessas que devastam o corpo e corroem a alma, vais saber o que estou dizendo. Escuta quem sabe das coisas: há enfermidades que te jogam na cama e te fazem crer que remédio algum será capaz de curar-te. É desalentador. Então, por que não calça teus chinelos, toma um banho quente e vai te proteger em teus cobertores? Espero que eu não tenha que te lembrar mais uma vez, menino: há males pelos quais tu és o único responsável.

Escuta, menino! Está na hora de despertar desse sonho que manteve teus olhos fechados durante tantos anos. Presta bastante atenção ao teu redor: não há mais brinquedos, jardins ou resfriados. É verdade, olha bem. O que existe agora são pessoas, planos e relações. Vês? É com eles que tu precisas lidar, e isso não deveria ser uma tarefa difícil, já que tantas vezes a vida esteve soprando em teu ouvido coisas que tu deverias aprender. Tu estavas escutando esse tempo todo? Praticaste? Olha, menino, não há outra alternativa para ti. Obedece meu conselho ao menos uma única vez: vai dormir. Dorme, porque já passou da tua hora. Que minhas palavras ecoem agora para ti como uma canção de ninar. E que te pronunciem pela última vez: dorme, menino. E acorda homem.

Imagem: reprodução.

Como é fácil amar o mar

Ela sempre amou o mar. Tinha aquele amor disfarçado de raiva toda vez que as ondas lhe arrastavam para longe quando o seu corpo flutuava feliz, transformando a brincadeira em bagunça. E também pelo sabor da água salgada que insistia em entrar pelas suas narinas, arrancando-lhe uma careta, só para provar que era diferente de tudo o que ela já havia provado. Amava o mar que existia dentro das conchinhas, quando lhes encostava no  ouvido. Ou quando ele se aproximava de onde estava sentada construindo o seu castelo de areia, e voltava rápido ameaçando levar consigo o seu chinelo cor-de-rosa, propondo ali um pega-pega desleal. E porque mar rima com amar, e durante a sua infância era uma das combinações que mais gostava de rabiscar no caderno pequeno de espiral.

Ela sempre amou o mar. Porque é dele esse poder meio estranho de abrir as comportas da sua imaginação e deixar desaguar ali os seus sonhos mais doces, como um rio sem curso, num fenômeno que as ciências jamais haviam prestado atenção. Podia passar um dia inteiro ali, queimando ao sol forte, descansando sob a sombra de uma nuvem, ou sentindo a brisa da tardinha arrepiando-lhe os pelos devagar – simplesmente imaginando. Era como se cada grão de areia ao seu redor fosse a possibilidade de algo que poderia dar certo. Como se nada, nem mesmo um vento forte ou um dragão, pudesse derrubar o seu castelo. Porque o mar lhe trazia essa fantasia de acreditar que o infinito cabia em seus olhos. E que assim como um punhado de areia, milhares de sonhos – reais e palpáveis – poderiam estar seguros em suas mãos.

Ela sempre amou o mar. E dentre os motivos que foi colecionando para isso, descobriu que o maior de todos era porque ele simplesmente estava lá. Assim como o mar lhe fazia sonhadora, também levava de volta os seus sonhos abortados. Essa mistura de água, sal e areia parecia esfoliar a sua alma e energizar o seu corpo. Os planos frustrados, amores rompidos, perdas irreversíveis… todo o peso dos seus ombros podia ser depositado ali, como uma oferenda tosca à beira da praia. Ela jurava até mesmo poder sentir exatamente qual era a onda que estava vindo buscar de volta, e lhe deixava um sorriso torto.

Ela ama o mar porque ele parece lhe ensinar algo que seu pai e sua mãe talvez não tiveram coragem: é preciso abrir mão de vez em quando. De um sonho, de um sorriso, de um plano ou de uma pessoa. Aqueles que são ousados demais não podem conseguir exatamente tudo o que querem – porque é impossível ter o mundo inteiro só para si. Então, sempre que algo não dá certo, ela vai respirar maresia e tomar um banho de sal. Deixa lá as angústias. E volta com algo novo reluzindo em algum lugar da sua imaginação – porque não importa quantas mágoas você tenha para entregar ao mar, ele sempre vai te fazer acreditar novamente que o infinito é possível.

Hoje, ela só queria ver o mar.

 

Foto: arquivo pessoal.

Cortes e curas

Lembro com precisa exatidão das últimas vezes em que fui ao salão cortar o cabelo. Ombros rígidos, mãos frias e quatro palavras que movimentavam meus lábios com insistência: só três dedinhos, moça.  Olhos que tentavam ver por entre as mexas jogadas para frente e teimavam em querer acompanhar movimentos que o pescoço não podia fazer. Só três dedinhos, moça. Três dedinhos. Era uma súplica, um cilício encravado em silêncio. Era uma oração: só três dedinhos. Três. Por favor, moça.

Em certa ocasião, os três dedinhos viraram uma infinidade de cabelo caindo no meu colo. Quando fecho os olhos ainda posso recordar a náusea de me ver novamente vestida com aquela capa, de uma brancura propositalmente alva para contrastar com minhas madeixas negras. Eu vi aquele branco ser tomado por cada fio, como um campo de neve engolido pelas trevas dos livros de ficção que li durante a infância. Ao final, olhei para o espelho e encarei com olhos lacrimejados aquela pessoa estranha. Tive raiva… de mim, da tesoura, da moça, das pontas que insistem em se duplicar. Tive raiva da vida que por vezes nos obriga a cometer pequenos suicídios.

Alguns meses se passaram até que eu me desse conta de que meu cabelo já havia voltado ao comprimento antigo. E eu, descrente por natureza, me vi descobrindo que não há pequenas mortes das quais não possamos ressuscitar. As flores que o cachorro destruiu brincando no jardim cresceram de novo. O dente de leite caiu e nasceu um mais forte em seu lugar. Lembro-me da colega que pensei ser minha melhor amiga, mas depois que mudou de cidade nunca mais fez contato. Do namoradinho do colegial que eu acreditava ser o meu grande amor, mas que nunca lia minhas poesias rabiscadas no fundo do caderno de 12 matérias. E já pensou se eu nunca tivesse pedido demissão daquele emprego quando apareceu uma nova oportunidade?

É mais certo que dois e dois são quatro: a gente precisa mesmo mudar. Os planos, o penteado e o endereço. Cortar aquilo que está apodrecendo e deixar renascer o que pulsa. Que contestem os matemáticos, mas não vejo ciência mais exata do que esta: há poucas perdas na vida das quais não conseguimos regenerar. Quando a ferida abre, o nosso corpo obriga o tecido a se recompor. Não é preciso nem mesmo a gente querer: a própria natureza trabalha silenciosa para tudo ficar bem.

Pra ser bem sincera, não me considero otimista. Odeio autoajuda barata, não me fio em crenças e não confio em destinos. Mas há uma verdade que carrego acesa como uma vela que se recusa a apagar: a vida é boa e sempre guarda o melhor. É preciso apenas ceder espaço. Por isso, aprendi a ter menos medo de tesoura e mais paladar para saborear o frio na barriga que vem de tudo o que é novo e desafia.  Provações são necessárias. E, quando pensamos que o tempo está se fechando para uma nova tempestade, somos surpreendidos com chuva de sorrisos.

A vida às vezes nos encara na forma de uma moça com uma tesoura na mão. A gente teme e chora pelo que nos é tirado. Mas, por mais que demore, no final percebemos que algo dentro de nós ficou mais bonito e saudável. Porque há cortes que são mesmo necessários. E ainda que possamos achar que eles vêm para ferir – acredite – uma hora descobrimos que sua missão é curar.

 

 

Cartas que não entreguei e outras besteiras de amor

Naquela calça de moletom azul um pouco curta nas pernas, com o cois morrendo em um tronco nu. No meio das gotas de água que ainda escorrem por teus ombros largos, eu vejo. Não presto muita atenção nos resmungos que dizem algo sobre o frio, com meu jeito absorto de observar o desenho dos teus movimentos que agitam a toalha no cabelo molhado, arrepiando-o. Entre o aroma do desodorante furtado da minha prateleira e o olhar que me sorri adentrando o quarto, eu vejo amor.

No meio das azeitonas pretas que eu separo uma a uma do meu pedaço de pizza e coloco no teu prato, eu vejo. Com aquela saciedade de quem sente que é possível equilibrar nossas diferenças, sorrio satisfeita.  Perdido entre a bagunça de catchup, frango, catupiry, eu sinto o seu sabor.  Na TV, uma reportagem sobre super-heróis humanos. No sofá, eu alertando sobre a coca-cola no edredom. Entre os papéis de bombons e as capas de filmes espalhados pelos fins de tarde, eu vejo amor.

No calor do teu corpo que me queima sem piedade e inflama todos os meus sentidos. Nas marcas que continuam ardendo a minha pele na manhã seguinte, eu sinto. Entre os teus pedaços preenchendo as minhas unhas e toda essa confusão de sussurros e suor. No momento da certeza de que o meu corpo foi desenhado com o único propósito de encaixar com perfeição no teu. No meio da madrugada e do êxtase, ele está lá.

Quando desperto do sono antes do amanhecer com teus braços me puxando para perto do teu corpo, eu vejo. E se durante algum pesadelo chama meu nome, não é preciso abrir os olhos para enxergar. No jeito em que nos abraçamos debaixo do cobertor, com braços, pernas, pés e pescoços entrelaçados, em uma grande bagunça na qual só o coração consegue se achar. Em cada intervalo de tua respiração quente na minha nuca, dia após dia, eu posso sentir.

Ao notar você me observando com curiosidade pintar os olhos, ler um livro ou cortar uma cebola. No teu interesse nas minhas pequenezas, eu vejo. Quando me faz perguntas cujas respostas, eu sei, não vão te acrescentar nada, mas simbolizam apenas o teu simples prazer de participar do todo da  minha vida. Na tua vontade em ser parte de mim, eu vejo amor.

Bem no centro do vazio que fica toda vez que você parte. Dobrado no meio das roupas que eu arrumo para você levar embora, eu vejo. Pairando no quarto escuro quando tudo em mim arde de saudade, e o medo da perda comprime o peito com uma dor realmente física.  Nos dedos embriagados que digitam uma SMS trôpega e sem sentido. Num papel amarelado onde eu rabisco besteiras sobre amor. Bem claro em cada palavra torta, eu vejo.

E quando você voltar, estarei tão ocupada em ser sua, que essa vai ser só mais uma carta que eu nunca te entreguei.

 

 

Absintos e objeções num balcão de bar

É sempre assim: quando absorvo a quietude ao redor consigo observar o tamanho da bagunça. Finjo que abstraio os incômodos, porque nunca aprendi a obedecê-los. É essa vida, seu moço! Com seus abismos onde não cabe todo o meu abstrato. E suas obras que não preenchem a minha obsessão. Vou te contar um segredo: na caixa que guardei aquele retrato tranquei também o meu coração. Para de falar que está consumado, me deixa fazer uma objeção! E dizer que nem mais uma dose de absinto ou uma dúzia de abraços conseguiriam me fazer entender o que eu sinto e me livrar desse embaraço. Abre o meu peito, seu moço, lê o meu diário! Eu não sei mentir, eu só queria deixar claro: os meus olhos apesar de oblíquos nunca foram rasos. Abrevia essa conversa, não me obriga a dizer que o único fato absoluto é que meu desejo era obstinado.

Então não é a gente que abdica, mas o sentimento obtuso. É a hora em que as mágoas confrontam a abstinência e fazem da lembrança apenas um objeto antiquado e sem uso. Escuta, seu moço: amor e ódio estão sempre falando a mesma linguagem. Eu nunca obtenho respostas. Então absorvo esse silêncio empedrado e selvagem.

Só vou quebrá-lo mais uma vez pra confessar que eu quis obrigar o destino a me abrigar naqueles braços. Mas quando desliguei o abajur e me deparei com o obscuro, descobri que o óbvio nem sempre é claro – mas eu o vi. E ouvi o eco de um sorriso fino caindo ao fundo do poço. Não sei se isso me abala ou me obedece. Sinto apenas que é tudo obsceno e absurdo. Mas é a verdade, seu moço.