Reencontro


Há um canto de aconchego esperando tua chegada em hora não anunciada, arquitetado sob medida para o teu repousar. Há um canto de alegria adormecido na garganta, aguardando o teu abrir de portas para cheio de alvoroço despertar. Hei de começar assoviando baixinho, pra te guiar pelo caminho do meu adentrar. Chegarás feito passarinho que acabara de deixar o ninho, desconhecendo que somente no risco do voo é possível se encontrar.

Deixarei escancaradas as portas e janelas, não haverá uma só frecha que te ameace encarcerar. Garanto-te vento pra soprar o ar de assustada, e em pouco se darás por acostumada com o excesso de luz por cá a se derramar. Teus olhos varrerão todo o espaço, e descobrirás que aqui cabem todos os passos que pedirem o teu esparramar. Cabem teus causos e calos, cabem tuas flores e talos, cabem tuas dores e abalos, cabe tudo o que te fizeram crer que era excesso ou errado antes do teu chegar.

E então te reconheço: chegaste. Dou-te as boas-vindas a tu mesma. Enfim, voltaste para ti. E também para mim, eu que sou tu e estava a te esperar. Às vezes o regresso se confunde com a própria descoberta. Apresento-me, é chegada a hora de nos conhecer. Adentrar em si é aventura de desassossego, mas não há outro lugar – não há mais ninguém – onde possamos nos encontrar. Não há alternativa, pois, senão nos aventurar. Repousa por hoje no aconchego do meu canto. Me embala pra dormir na voz do teu canto. Nada como estar em casa. Nada como habitar livremente em si mesma.

Olhos abertos pra dentro

Tem dias que a gente acorda e não enxerga a luz do sol pelas frestas da janela. Mal nos damos conta, levantando automaticamente, ilusão de pés no chão. Água no rosto, água pro café, água nas plantas. Respirar fundo para não pensar nas comportas que guardam a viva água dentro do peito. E então a primeira hora é a mecânica esvaziada de pensamento: manteiga no pão, chuveiro no morno, louça no escorredor.

Mas a rotina tão familiar logo se mostra uma total desconhecida dentro da nossa própria casa. E nossa casa se revela um ponto cego no mundo. E nos descobrimos completos estranhos em nós mesmos. É que alguns dias nós acordamos abrindo os olhos pra dentro, e todo o viver à nossa volta se desmancha em completo desinteresse. As frases impressas no livro não dizem uma só palavra, o “bom dia” do colega de trabalho soa como um ruído distante, a comida no prato nos força a engolir as horas cruas.

O que se fez do tempo até aqui? O que será do tempo que restar? Fardos do passado, cenários imaginários do futuro, tudo se entrecruza e nada tem conexão – apenas o medo do que escapa entre os dedos. O que é a vida além da louça pra lavar e das plantas a regar? O que nos sobra da vida quando ela começa a se desvanecer, apagando-se dos olhos daqueles que amamos?

Tempo vivido nos atravessa violento. Tempo a viver se dissolve sem sentido. Linha do tempo nunca foi linear – novelo emaranhado de perguntas sem resposta ou razão. É assustador reconhecer a nossa infinita pequeneza no mundo, a completa insignificância daquilo que guardamos no ponto cego da alma. Nos vemos preenchidos de ausências, e ausentes de qualquer essência deixamos os sapatos do lado de fora da porta para entrar em casa ao fim do dia.

O dia em que acordamos abrindo os olhos pra dentro, e tudo se resumiu a tatear vazios. Embora cegos à sucessão de vida lá fora, parece que nunca antes enxergamos tudo de forma tão clara. É que de tão recorrente, parece cegueira ensaiada. E então seguimos tateando até encontrar o vazio da cama. E rezamos baixinho – também para o vazio – na esperança de que amanhã existam frechas de luz do sol pela janela.

Estórias que não se conta

Tem sentimentos que a palavra não toca. Há terrenos onde a palavra não pisa. Emoções que se estendem assustadoras feito um abismo, e tentar alcançá-las seria lidar com o irremediável da queda livre – uma vez ditas, não há como voltar atrás. Por isso as palavras só olham de esguelha, a uma distância segura. Não se sabe se é o pavor do que podem encontrar ou o instinto de evitar que elas próprias se espatifem e se silenciem para sempre.

Reza a lenda que, nos mares em que as palavras não navegam, há um monstro adormecido. Ali, onde tudo é escuridão debaixo da superfície calma. Mas as palavras sabem que não dá pra se aventurar por lá sem correr o risco de despertar a ira da criatura. É por isso que as palavras – até aquelas que dizemos apenas pra nós mesmos – temem o impronunciável. E então os lábios se refugiam na segurança do não dito, disfarçando-se entre sorrisos, e a caneta sabe o exato instante em que deve frear a tinta sobre o papel.

E a gente aprende a falar sem dizer, a comunicar sem entregar. Como aquele dia em que evitamos nos olhar no espelho pra não ter que encarar a espinha cheia de pus que nasceu em nosso rosto, algumas palavras também evitam nos olhar por dentro. É que em todas as suas infinitas possibilidades de combinações, desconhecem a organização necessária pra materializar tamanho horror. De tanto ignorar o que nunca foi dito, creem que uma hora vai cessar o que se há por dizer.

Às vezes são as palavras que fogem da gente, às vezes somos nós que fugimos das palavras. Literalmente correndo pela porta de casa, enquanto o ar corta os pulmões, até cansarem as pernas e faltar o fôlego. Nem sempre a fuga é saudável, e às vezes só esperamos que as palavras se derretam com o gelo do conhaque apreciado em um único gole, um gole atrás do outro. Às vezes queimamos as palavras na ponta do cigarro, às vezes lhes assistimos descer pelo ralo, às vezes não conseguimos evitar o engasgo e soluçamos palavras sem sentido – e a falta de sentido é o melhor que elas conseguem arrancar de nós.

Outras vezes as palavras se evaporam antes de ganhar saliva, e seguramos as lágrimas enquanto elas chovem por dentro, rezando em silêncio para que não decorem com morfo o nosso melhor. É que às vezes as palavras são sobrevivência, às vezes são sentença. Perdi as contas de quantas vezes morri só por me atrever a olhar pro que não tenho coragem de dizer a mim mesma. Toda pronúncia se torna promíscua só ao pensar em anunciar. Há estórias que não se conta. Calo como quem canta.

As marcas de um relacionamento abusivo

Eles chegaram disfarçados de cuidado e proteção. Uma grosseria aqui. Uma proibição ali. Um grito acolá. Os abusos começaram de forma sutil, ganharam espaço e, em pouco tempo, foram normalizados dentro da relação. O príncipe encantado se tornou um sapo. A qualquer tentativa de questionar as mudanças, tudo se resumia a um desvario de loucura e exagero meus. Mais uma grosseria. Que péssima companheira eu era: incompreensiva e nada empática, ao provocar desgastes chatos e desnecessários em meio aos seus momentos de dificuldades. Outra proibição. Quando a situação era bastante escancarada, impossível de ser minimizada, então ela aconteceu apenas por que eu dei algum motivo. Um grito mais forte. “Isso acontece em toda relação.”

Quem já viveu um relacionamento abusivo dificilmente esquece as ofensas, os palavrões, murros em paredes, empurrões, objetos quebrados. De ser afastada dos amigos, violada, traída, manipulada, desacreditada, fragilizada. A gente ainda sente a pontada no peito ao lembrar como era deitar na cama soluçando de choro, após mais uma explosão, enquanto o outro virava pro lado e dormia tranquilo. A gente ainda carrega a ferida da perda da autoestima, do controle, da noção da realidade. A gente se lembra de todas as justificativas para a intimidação, a humilhação, as ameaças. “Eu não sou assim, você que faz perder a cabeça.”

Quem já viveu um relacionamento abusivo sabe como é difícil reconhecer a violência psicológica quando se é vítima dela. O ciclo é vicioso: calmaria, explosão, reconciliação. O mesmo cara que nos xinga, nos empurra e nos humilha em público é o cara que diz que nos ama, cozinha pra nós, procura o nosso filme preferido e faz planos pro futuro. Pra quem está emocionalmente envolvida e fragilizada, é uma missão bastante difícil enxergar o agressor dentro do amor das nossas vidas. “Você nunca vai encontrar alguém que te ame e te suporte como eu.”

Quem já viveu um relacionamento abusivo sabe que, lá dentro, a gente sente que algo está errado. A gente tem vergonha de expor a situação para as outras pessoas, de buscar ajuda dos amigos – na verdade, muitas vezes nem sabemos que precisamos de ajuda. Sozinhas ali, a convivência se torna um campo minado. A gente passa a medir as palavras e a calcular cada atitude para evitar que, por nosso descuido, estoure outra bomba. É quando, sem perceber, nasce o medo. Porque, quando a gente provoca, merecemos arcar com as consequências. Afinal, somos nós que adoramos uma confusão. Nós costumamos até inventar coisas que nunca aconteceram para arquitetar uma briga. Nós somos tão manipuladas que chegamos ao ponto de questionar nossa sanidade mental. “Você é doente, precisa se tratar.”

Sim, a gente acredita. E quando a gente se culpa por erros que não são nossos, a gente perdoa os erros do outro. Perdoa o controle, perdoa a traição, perdoa os gritos, a humilhação, o sexo forçado, o puxão pelo braço, o que for preciso. “Mas ele nunca me bateu.” Nós evitamos usar a roupa que gostamos, mudamos nossa aparência para agradá-lo, deixamos de cumprimentar aquele amigo, perdemos a individualidade e a privacidade. “Mas ele nunca me bateu.” A gente entende que é nossa obrigação atender o celular no máximo ao terceiro toque e se destrói por dentro pra fazer o outro feliz. “Mas ele nunca me bateu.”

Quando a violência deixa de ser tão somente psicológica e se torna física, o estalo não ecoa apenas do primeiro tapa – mas de algum lugar dentro de nós. Quando sentimos o peso na carne, finalmente entendemos que, por dentro, já apanhamos tanto que estamos completamente desfiguradas. E então descobrimos que a dor na alma é e sempre será maior. Na frente do espelho, encaramos um animal tão amedrontado e impotente, que não há resquício de força ou coragem para enfrentar o que aconteceu – a próxima bomba pode ser ainda pior. Então até as feridas do corpo a gente perdoa. “Eu também tive culpa.”

Quem já viveu um relacionamento abusivo sabe que essa é uma ferida que dificilmente se fecha. A gente supera o sentimento de culpa, a gente vence a vergonha, a gente perde o bloqueio de falar a respeito, a gente enfrenta o medo de se relacionar de novo; mas a gente não se cura. Uma relação desse tipo parece mudar o que nós somos, e depois disso o caminho é longo e tortuoso até encontrarmos os nossos pedaços outra vez. A sensação é que nunca mais voltaremos a ser inteiras.

Depois de me afundar numa escuridão bem profunda, eu consegui respirar de novo. Durante muito tempo, eu achei que havia me afogado sozinha, mas conhecer o relato de outras mulheres que viveram o mesmo foi o meu colete salva-vidas. Sempre haverá dedos apontados para nos responsabilizar, nos questionar, nos empurrar para baixo. Mas, do outro lado, também têm muitas mãos dispostas a segurar firme e nos trazer de volta pra superfície. Com o tempo, a gente aprende a conviver com as cicatrizes e a remendar os cacos. Algumas vezes, os pulmões ainda vão voltar a doer. Pode até faltar ar de vez em quando. Mas passa. E a gente sobrevive.

>>> Eu queria que este texto representasse todas as mulheres que já viveram ou vivem um relacionamento abusivo. Mas, infelizmente, nem todas nós realmente sobrevivem pra contar a história. Se você está vivendo num campo minado, se não sabe mais diferenciar agressão e amor, busque seu colete salva-vidas. Ligue 180, busque o Centro de Referência da Mulher da sua cidade (em Vitória da Conquista, o Crav oferece atendimento psicossocial e jurídico gratuitos, e você pode saber mais pelo telefone 3424-5325). Se estiver confusa sobre o que está vivendo, converse com familiares e amigos, ou busque outras mulheres que já viveram uma experiência parecida – inclusive esta que lhes fala. Não se deixe afogar por mais tempo. Você merece respirar de novo!

>>> Violência psicológica contra a mulher agora é crime previsto pelo Código Penal! De acordo com a lei, “causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação” pode gerar reclusão de seis meses a dois anos, além do pagamento de multa.


O amigo de verdade

Você tem um amigo que nunca desistiu de você? Que te fez o convite mesmo imaginando que você não iria. Que foi te buscar quando você se isolou. Que entendeu a razão de tuas respostas secas ou desinteresse e, nunca, deixou de querer saber como você está. Ou de conversar amenidades para, nas entrelinhas, deixar registrado que ele está ali. O amigo que já respeitou o teu espaço mas também soube a hora de te puxar pela mão. Aquele que soube o momento de guardar a própria dor no bolso para, ao ver o tamanho da tua ferida, ir te oferecer curativo. O amigo que te abraça na tua pior versão é um dos maiores retratos do amor.

Você já teve um amigo de quem não teme julgamentos? Aquele que você sabe que as palavras duras, às vezes, são a expressão necessária do cuidado e amor. O amigo que você tem a certeza de que não existe nada que ele fale sobre você, que ele também não fale para você. Que faz da sinceridade um gesto de acolhimento. E as preocupações sobre teus excessos ou desvios são apontadas primeiramente para você, e não transformadas tão somente em dedos nas tuas costas. Aquele amigo que é espaço seguro para mostrar teus maiores medos e inseguranças. Que sabe que tuas vulnerabilidades e falhas não te fazem uma pessoa pior, mas te fazem humano. O amigo com quem você se sente livre para ser você mesmo é um dos lugares mais bonitos do amor.

Você já teve um amigo que a vida precisou levar por outros caminhos, mas o decorrer dos anos nunca significou desencontro? O amigo que você não consegue acompanhar de pertinho a caminhada, mas a cada conversa se pega admirando a pessoa que ele se tornou. E todo novo encontro é como se o tempo nunca tivesse passado, porque ele é, afinal, aquele seu amigo. E você entende que, das poucas certezas que a maturidade traz, uma delas é que algumas raízes estão sempre lá, não importa o que, não importa quando, não importa onde. E que essas raízes dizem tanto sobre você quanto os frutos que continuam brotando pelos teus novos caminhos. O amigo que é a tua definição de “sempre” – para falar sobre passado e futuro – é uma dos laços mais fortes do amor.