Reparos

caféO café ainda está sobre a mesa, à tua espera. A caneca é a mesma que te arrancou risos na primeira vez em que veio à minha casa. Talvez você ainda não tenha reparado que, por isso, ela tem certo significado pra mim. A mesa já não continua da mesma forma: mudei a posição para que, do assento que você tomou como seu, tivesse uma boa visão da TV. Eu sei que você não admite perder o jornal, tampouco as superstições. Sei também que ponto-cruz está fora de moda, mas foi a única coisa que eu aprendi a costurar quando criança pra lembrar como fazer esse bordado torto na toalha de mesa. Tive a impressão tola de que, toda vez que você olhasse para a costura, estaria olhando um pouco para dentro de mim. Mas você também não reparou nela, eu sei.

Você não reparou que eu ando discretamente tentando estampar pedaços meus por onde você passa, pra chamar tua atenção como quem não quer nada. Não reparou que tenho feito isso pra te mostrar que a minha felicidade tem se resumido a dominar a receita de como te fazer feliz. Não reparou que eu ando por aí meio infeliz buscando indícios teus ao longo do dia. Nem nos planos que arquitetei sozinha nas noites em que tua respiração alta me roubou o sono. Nem mesmo no teu atraso sempre tão pontual, você não reparou. Nem no nó que se forma em minha garganta a cada vez que você justifica uma falta ou uma falha com ar de naturalidade. Você não reparou que você não estava aqui para fazer um comentário inútil sobre a previsão do tempo, para as mãos dadas até o ponto de ônibus, para o beijo rouco de bom dia. Você não estava aqui pro café nem pro cafuné. Não estava para as curvas diárias da vida.

Você não reparou que o peso das tuas ausências tem doído os meus ombros. E que dor e amor só rimam em poemas ruins. Ando cansada de andar cheia dos teus vazios, e me doar todo dia a uma nova dor na esperança de que você finalmente acerte a rima. Minha alma inteira está cansada de se alimentar de pedaços, receber metades, sentir pouco, viver ao meio. Às vezes me pergunto por que Deus soprou em cada célula do meu corpo essa mania de intensidade. Pergunte aos meus ex-amores: minha face é calmaria, mas meu coração é tempestade.  Eu gosto de me afogar em ondas de arrepio – não de lágrimas. Mas você também não tem reparado nelas, eu sei.

Como sei que o café sobre a mesa já está frio e amargo. Assim como o meu coração. Os dois já cansaram de te esperar, e sabem que “você” agora é um termo sem sentido que não se encaixa no poema. E, não se preocupe, a essa altura eu também não espero mais que você repare – nem nos detalhes, nem os danos.

 

Imagem: reprodução.

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5 Comentários

  1. Todos os clichês juntos para poder dizer como seus textos são bons!
    As palavras se encaixam… Parabéns por escrever tão bem!
    Amei todo o texto e me identifiquei mais com essa parte:
    “Não reparou que tenho feito isso pra te mostrar que a minha felicidade tem se resumido a dominar a receita de como te fazer feliz.”
    Você sabe bem traduzir com palavras o que, às vezes, está na ordem do não dito.
    abraços, Isadora.

  2. Adorei a paixão que você tem pelas palavras, foi um acaso eu ter encontrado esse site, mas não existe acaso né … tentarei manter contato e trazer boas notícias. Parabéns, seus textos são realmente bons!

  3. ”Como sei que o café sobre a mesa já está frio e amargo. Assim como o meu coração. Os dois já cansaram de te esperar”

    Como se minhas lagrimas dissolvessem em cada gota de café de sua xícara, como se em minha boca eu só sentisse o gosto do amargo do café

    . Tu descreves meus sentimentos sem ao menos senti-los, como se suas palavras tivessem sido ditadas pela minha alma.

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