Pedidos

Foi quando teus dedos embaraçaram nos botões da minha blusa que percebi que eu estava completamente às avessas. Por uma fração de segundo vislumbrei o pânico, mas teu hálito quente soprando brisa em meu pescoço varreu qualquer linearidade de pensamento. Me contorci por debaixo do teu corpo, sentindo você tatear com violência as brechas da minha renda. Outro botão se abriu, e eu imaginei quantos mais seriam necessários até você ver minha alma nua. Em que momento o efeito da velocidade das tuas mãos no tempo de intervalo entre os meus suspiros entregariam à tua razão a aceleração do meu peito? Desabotoou mais um. Essa brincadeira de me deixar desvendar já fugiu do controle – dia após dia, botão após botão. Todas as minhas fortalezas se tornaram vulneráveis, e os teus lábios aprenderam os exatos túneis e passagens secretas para transitar entre elas. Dia desses, numa dessas aventuras noturnas, o lençol macio dos teus pelos me fez desejar te ver entrando pela porta da frente, dizendo que veio pra ficar. Esperei a promessa se materializar dos teus lábios, mas ela nunca aconteceu.

Me promete que vai ficar, menino, e eu só te peço que me deixe às avessas. Puxa a alavanca desse calabouço tão assustador e me faz descobrir o labirinto desconhecido que me leva ao melhor de mim mesma. Deixa os meus olhos se calarem a contragosto quando eu assumir que estava errada quando jurei não ser possível haver pureza tão grande no vento que entraria quando eu esquecesse a porta aberta. Me promete, e então eu só te peço que pendure o paletó logo acima da maçaneta e tire os sapatos antes de pisar no tapete. Se você ficar, talvez eu simplifique as regras. É que o meu avesso teima em combinar com a tua bagunça, e nem a gravata que virou artigo de decoração do meu criado-mudo consegue prolongar por muito tempo a minha irritação. Me promete que vai ficar, e quem sabe a gente possa esquecer quantas vezes já nos enganamos com ventos passageiros em portas entreabertas e possamos, enfim, passar o trinco sem medo.

Me promete que vai ficar, menino, e só te peço que faça chá de canela. Eu ainda mantenho os velhos hábitos e especiarias, mas o meu paladar anda com mania de insistir no teu sabor. Não precisa nem me trazer na bandeja de cores fluorescentes, acompanhado por biscoitos de goma. Deixa aí mesmo no caneco de alumínio surrado sobre o fogão, que eu vou correr até a cozinha quando o aroma inundar a casa. Descalça, vou me aproximar em silêncio e observar com ouvidos atentos você cantar músicas em forma de ruídos aleatórios. Quando o improviso com as letras em inglês fizerem cócegas em minha barriga, o riso solto vai me denunciar. Então a nossa risada vai se misturar numa só, e o som dessa felicidade vai ter cheiro de canela. Você vai atravessar os braços por minha cintura, e eu vou abraçar o privilégio de pensar mais uma vez que essa é a sensação mais gostosa que eu já conheci. Me promete, menino, e talvez eu te entregue as palavras que ando colecionando secretamente em meu peito. E te diga que nunca mais quero experimentar algo diferente do gosto do teu chá, do aconchego do teu cheiro e da segurança do teu chão.

Eu estou aqui, aguardando. Ainda não ousei esvaziar uma parte do guarda-roupas, mas já sei escolhi mentalmente o destino que vou dar a tudo o que está ocupando o seu lugar. Também separei as notícias do dia que vamos comentar enquanto eu lavo a louça e você limpa a mesa. Assim como as rimas que nascem em meus lábios a cada vez que meus olhos descansam em teu rosto. Me promete que vai ficar, e então eu te escrevo poesias. Prometo descansar o lápis antes das dez, e depois, me descansar em teu peito. Eu ando sufocando com todos os versos de amor que tenho trancado no coração. Me promete, e então eu te entrego as sete chaves. Não demora, porque eu coloquei a água pra ferver no caneco de alumínio. Já tirei os chinelos na intenção de facilitar a minha espionagem – mas te espero sobre o tapete, pra você não desconfiar. Pendura o paletó detrás da porta, e não deixa nenhum medo atravessar por frestas entreabertas.

E por falar nisso, menino, não se esquece de passar o trinco. Me promete que veio pra ficar, e eu te prometo que esse é meu último pedido.

[Este texto faz parte do projeto Cinco Lados e é uma resposta para outro texto meu: “Promessas“. Somos 5 escritores com o desafio de escrever sobre 15 temas diferentes. Acompanhe esta saga lendo as outras quatro faces desse projeto: Acenda Essa Luz, A Gangorra, Casa de Seu Frô e Parede de Sonhos.]

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