Do malabares

MalabaresNa escuridão alta recortada por minha janela, ele não me vê. Carros apressados buscam o seu rumo ao fim do dia, pedestres tentam a sua passada mais larga, pessoas e calçada se chocam no ponto de ônibus. E, a cada sinal de “pare”, ele avança. Entre um inspirar e expirar, quando a parada por alguns segundos é obrigatória, a rua é transformada em palco. No semáforo, a luz vermelha. Nas mãos do malabares de fogo, um brilho que serpenteia entre o laranja, o amarelo e o azul.  Talvez na semiótica do mundo, essas cores apenas silenciem. Mas pela janela do prédio em frente, elas parecem murmurar: venha.

Dia desses, eu me apaixonei pelo malabares do sinal. Não sabia se era o efeito dos meus olhos vidrados ou das lentes de grau, mas o reflexo da sua luz se derramava por todos os lados – e aonde quer que eu olhasse, podia vê-la. O fogo engolido por minhas retinas iluminou um salão há muito deserto dentro de mim. Ecoou o alarme de incêndio, mas pareci não escutar. Lá embaixo, ele fazia mágica com aquele bastão – e talvez também melodia, e quem sabe tivesse abafado os ruídos ao redor. As extremidades estavam em chamas: para cima, para baixo, para o lado, um rodopio, uma pirueta, para baixo de novo. Sem cair no chão, sem sucumbir ao ar. Era fogo e luz e movimento… Era encanto.

Dia desses, eu tive inveja do malabares do sinal. Quando o assunto é chamas, eu não consigo manter o equilíbrio. Se me chama, e uma voz dentro de mim responde mais alto do que a minha razão, não importa o quão imóvel esteja o meu corpo: o coração vai. Desculpe-me, mas sou desastrada por natureza e sempre acabo derrubando o bastão – e então o fogo consome cada centímetro ao redor. E eu, envolvida pela sua intensidade e seduzida pelo seu brilho, não faço nada para evitar. Admito: eu gosto mesmo é de dançar no meio das fagulhas. Doo-me à voluntária hipnose de suas cores. Onde o calor queima e devasta, eu ergo lar. Sim, tenho paixão e tenho inveja do malabares: enquanto ele faz show com as chamas, eu sou o impotente objeto nas mãos do fogo.

Honestamente, a cada vez que ele se afasta para dar passagem aos carros, eu penso com terror e pânico no risco das queimaduras. Talvez seja típico de quem conhece as dores e carrega as cicatrizes toda vez que a vida prossegue em seu ritmo habitual. Porque no fundo, tanto eu quanto o malabares sabemos que, quando o alarme soa, não é para sussurrar canções bonitas, e sim para avisar sobre o perigo…

Mas, espera um pouco! O sinal ficou vermelho outra vez.

Imagem: reprodução.

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3 Comentários

  1. Que escritora é essa ? que solo fértil te pariu por entre pedras e flores ? Que Rei Mago te presenteou com a caneta para encantar mentes e corações? Qual Homero te plantou tamanha sensibilidade a ponto de transformá-las em palavras? Quem é essa viajante das letras?
    Menina, estou encantada e embriagada com teus escritos.
    Sâmia, parabéns! Pouquíssimas pessoas se expressam com tamanha propriedade.
    Na sua noite de autógrafos esperarei, pacientemente, na longuíssima fila.

  2. Elizonete,
    Fico imensamente feliz com um elogio desses. Obrigada pelas palavras!
    Será bom tê-la como leitora por aqui 🙂 Abraço!

  3. Ha pessoas encantadoras de serpentes e há outras que nos hipnotizam com as palavras.Sensibilidade ,a flor da pele onde reluz transparente os sentimentos profundos , pétala a pétala , desfolhando-se, morrendo e florescendo como as estaçoes, …eis o ser puro que abdicou de deus por saber que em seu nome se justifica tanta penuria, crueldade e aprisionamento do eu libertario. Nada como praticar o bem com a alma livre …..mas diante da nossa fragilidade não haverá momento em que nos apegaremos as forças da natureza, á luz cósmica ,as energias estrelares , a todos os seres puros do universo em busca de uma salvação , um consolo , a nossa dor? pois esta é essencia humana, a fragilidade diante da dor e da morte o que justifica todas as religiões ,e elas souberam manipular e aprisionar grande parte da humanidade. Siga em frente desfiando sentimentos verdadeiros, expondo ao mundo que ainda existe no caos , na alegria, na encenação, nas fantasias ,no cotidiano ,sopro de humanidade. Cheguei até você através de uma amiga de Brejões, Elizonete e confesso que achei seu texto fluido, emocional, consistente para uma menina tão jovem…

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