Asas que vêm e vão

Era uma vez um anjo que perdeu suas asas, e numa queda descompassada, ao chão chegou. Seu coração ardia em brasas, porque nessa nova estrada, dois pilares não mais teria ao seu lado – uma amizade arrebentada e um amor mutilado. A dor da queda foi tudo o que ficou.

Rapidamente dissipou-se a sua crendice, e o que lá de cima parecia musical era apenas um véu – revelava agora verdadeira imundice. O que vivera até então lhe parecia um mero devaneio celestial. No presente escuro não enxergava, e lhe doía o chão duro em que estava. E um dia – ele descobriria – tudo é mais duro nessa vida real.

O que havia de tão forte naquela dor que parecia não mais cessar? O anjo caído não entendia porque o seu louvor, que tantos frutos brotou, dessa forma havia de acabar. O que mais lhe doía era o corpo ou o coração? Chorou lágrimas vazias, cumprimentando esse mundo de cão. O mundo dos homens, agora é aqui o seu lugar. O real em sua essência, sem artimanhas para lhe ludibriar.

Por trás dos sorrisos e da pujança, a dissimulação. Entre uma e outra palavra de segurança, a conspiração. E os braços abertos em juras de confiança, esperam apenas o abraço e a respiração mansa, para erguer o punhal em uma das mãos. Eis a vida como ela é. Eis os homens como eles são.

(E a olhos céticos de esperança, resta apenas o convívio com a decepção).

A voz do pessimismo é apenas um sintoma da fé esvaída. Mas se um dia estiver à beira do abismo, e uma mão lhe for estendida, como saber se é uma armadilha pior, ou apenas mais uma alma caída? Sentia que não estava só – à sua volta ainda conseguia sentir o pulsar da vida. Anjos de asas quebradas talvez vagassem ao seu redor, e quem sabe um dia lhe apaguem essa ferida, quando a sorte do acaso for maior.

Foi assim que o anjo cansou-se de ser caído, e do chão ergueu-se. Buscaria nesse novo mundo algum sentido, algo que sua mente lhe espairecesse. Não queria o céu, d’onde felicidade não mais poderia ter. Antes no inferno viver ao léu – ao menos não haveria o que temer.

Mas no limiar estava, quando uma borboleta em seu umbro pousou. Como nada em si hesitava, a decisão foi certeira: ousou. Pegaria carona naquelas asas esbaforidas – não pelos caminhos dos ares, mas pelas lições da vida. Ao reter o fôlego, o anjo começou a andar.

E a partir daquele dia – em meio a passos trôpegos, ele já sabia – nunca mais voltaria a voar.

 

Texto originalmente publicado no site Revertério.

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