Antes de você fechar a porta

Ei, não finge que não me viu. Teus passos pesados já te denunciaram por detrás do olho mágico. Não se preocupe em pentear os cabelos com os dedos antes de eu entrar. Hoje eu só vou te olhar nos olhos. Não trago a mesma ternura de costume, mas, ainda assim, sustenta meu olhar. Eu vim te entregar o que é teu por direito e dever – os discos de Cazuza, a camiseta que eu fazia de pijama e as palavras que não me desceram na garganta. Me olha nos olhos, porque apesar de pequenos eles são profundos, e eu gosto mesmo é de verdades completas. Me olha – é assim que eu me despeço antes de sair por uma porta. E eu não gosto de nada entreaberto, você bem sabe.

Não vou me sentar, pois não demoro. Pode ganhar tempo enquanto faz perguntas triviais fingindo que ajeita os óculos. Em se tratando de você, espera é um dos meus estados constantes. Agora, é sua vez de ter paciência: levanta a cabeça e não desvia a mira. Lê nas minhas retinas o roteiro dos planos que andei traçando. A viagem ao litoral. O álbum de fotografias da infância. O beijo de bom dia em uma manhã de quarta-feira qualquer. Todos eles escritos enquanto você segurava minha mão firme, feito professor guiando uma criança em suas primeiras palavras. Você quebrou o meu medo. Sussurrou em meu ouvido pedaços desse roteiro. Depois quebrou a ponta do lápis, e me deixou sem entender por que o papel não mostrava o resultado dos meus movimentos, por maior o esforço que eu fizesse.

Toma aqui todos os rascunhos e os papeis em branco. São teus. Não precisa repetir o meu nome e deixar a frase morrer num suspiro, como quem não sabe o que dizer. Eu não vim em busca de respostas. Mas faço questão de te entregar de volta todas as interrogações e lacunas que você me presenteou. Elas já estão empacotados há um tempo e não me fizeram falta um dia sequer. Viver na dúvida é para quem não se importa. Além disso, um dia a insegurança mostra que ela não combina muito bem com reciprocidade. A gente até demora pra entender a conta, mas não dá pra ignorar o resultado. Até hoje eu não compreendi essa equação, mas finalmente me dei por convencida. Então, já que estou aqui, vou te deixar saber que guardei os últimos anos como uma grande incógnita. Não, não me fale que é simples resolvê-la. Nada disso me interessa mais.

É que viver num conta-gotas não é para mim. Ou eu caminho de pés firmes na praia, ou eu mergulho fundo. Não me contenta o meio termo das superficialidades – disso você também sabe. E eu, que de tanto me afogar criei trauma de mar, aceitei te dar a mão e ir enfrentando as ondas. Você me carregou a cada passo e prometeu que era seguro. Lembra como eram felizes os dias sob o sol? Nós dois mergulhamos juntos. Não demorou muito para eu sentir a dor, mas sim para aceitar que ela era rotina. Só muito tempo depois enxerguei o motivo do acidente – você nunca havia me contado que você era raso demais.

Eu já aceitei tua covardia, veja bem. Só lute contra ela mais um pouco e não abaixe a cabeça de novo. Não se preocupe, hoje eu não vou chorar. Há dias que enterrei a última lágrima no ralo do banheiro. E também passei um tempo me martirizando por ter te endereçado tantas delas. Mas é porque eu sou feita de tantos – tudo o que eu sinto transborda. É da minha natureza recusar a água na cintura, a porta entreaberta, as meias verdades, os amores pela metade. Minha matéria-prima é a intensidade. Não me culpe – é que de tanto ser partida em cacos, assumi comigo mesma o compromisso de me manter inteira. Agora, meu peito só fica aberto para receber o que for do seu tamanho. Coração medíocre não me acompanha mais – graças a deus.

Aproveito também pra te devolver tudo mais que perdeu espaço nos meus dias – os “boa noite” atropelados, os carinhos em mão única e minha direção na tua contramão. Também estão aqui as ligações na volta do trabalho que ficaram pra depois, a espera pelos comentários das músicas que te dediquei e você nunca escutou, e aquela última confissão de amor que não teve resposta. Nada disso é meu, nem de longe se parece comigo. Eu nunca soube conviver com esses pesos, e me despeço de todos eles aqui.

Ah, só mais uma coisa. Antes você de fechar a porta, me olha nos olhos uma última vez. É que eu gosto mesmo é de verdades completas – isso sim é o que eu entendo por leveza. E, na verdade, eu só vim aqui pra te dizer uma coisa: você foi a mentira mais bem contada que eu já vivi.

[Este texto faz parte do projeto Cinco Lados e é inspirado no tema “Mentiras”. Somos 5 escritores com o desafio de escrever sobre 15 temas diferentes. Acompanhe esta saga lendo as outras quatro faces desse projeto: Acenda Essa Luz, A Gangorra, Casa de Seu Frô e Parede de Sonhos.]

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